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9.11.10

Yeshuah, parte 1

Texto de Júlia Bárány Yaari prefaciando a HQ "Yeshuah” de Laudo Ferreira (Ed. Devir) – As notas ao final são minhas.

Veio como uma criança indefesa, outros dizem que é lenda.

Há dois mil anos falamos dele. Ele mudou o mundo e cada um de nós, mesmo que não tenhamos consciência disso.

É a figura histórica a respeito de quem mais se escreveu, mais se inquiriu. As divergências na compreensão de seus ensinamentos já existiam entre os próprios apóstolos, antes mesmo de sua partida. Embora suas palavras, registradas por seus seguidores conforme se lembravam delas no mínimo trinta anos depois de sua morte, sejam simples, transmitindo conceitos básicos repetidos de diversas formas, o entendimento não é fácil, pois supõe uma mudança interior.

Ele usou discurso direto com os mais íntimos, mas com o povo falava por parábolas, como se faz com criancinhas que aprendem por meio dos contos de fadas e histórias [1].

Os documentos históricos e os registros de seus ensinamentos passam periodicamente por depurações e reformulações, na busca da verdade. Diferentes grupos disputam o reconhecimento como detentores das palavras autênticas dele. Artistas têm procurado esta verdade por meio da música, da pintura, da escultura, da literatura, cada obra sendo uma interpretação pessoal do autor.

Cada um projeta o seu Jesus com as características que lhe dizem aquilo que deseja ouvir. Instalam-se os estereótipos. Manifestam-se os ideais, as aspirações, os anseios [2].

Passamos a duvidar se é possível chegar aos fatos incontestáveis sobre sua vida, descobrir as palavras que ele de fato proferiu. Se é possível escavar através de camadas e camadas de interpolações, interpretações, encobrimentos, descobrimentos, interesses mundanos, ou simplesmente da ignorância e fraqueza dos seres humanos que promoveram guerras e cometeram atrocidades em seu nome. Se é possível encontrá-lo livre dos dogmas, não engessado em instituições que manipulam as pessoas para firmar seu poder.

Onde encontrá-lo?

Cada um que procura o seu Jesus o encontra dentro de si mesmo [3].

E nessa multiplicidade de seres ele se esparrama como chuva de estrelas, cada uma com seu brilho próprio, feitas, no entanto, todas da mesma essência de luz. Qual é mais verdadeira que as outras? Na obra aberta, como é a obra de Jesus, a maravilha é que todas são verdadeiras [4].

Na continuação, Júlia fala sobre os evangelhos sinópticos e apócrifos do início do cristianismo.

***

[1] O próprio recurso de se passar conhecimento através de parábolas remete a esta tentativa de resumir vários níveis de entendimento em um único discurso simples, capaz de ser passado adiante por quase todos. Isso significa que o Novo Testamento é quase em sua totalidade em conjunto de metáforas, independente de quem as tenha realmente escrito. Nesse sentido, buscar lá a “Verdade Absoluta” pode ser inútil, na medida em que nossa compreensão dela irá variar de acordo com a capacidade de interpretação de cada um.
Por outro lado, investigar a fundo os ensinamentos mais profundos de Jesus pode ser uma atividade revigorante, na medida em que seremos capazes de cada vez compreender um pouco mais, adentrando passo a passo nos níveis mais profundos do conhecimento espiritual ali presente. Claro que, para tal, não precisaremos nos limitar aos evangelhos sinópticos, pois há também muita profundidade em alguns apócrifos, particularmente no Evangelho de Tomé.

[2] A própria imagem de Jesus como um belo homem branco de cabelos e barba castanhos só se tornou mais aceita mais de 600 anos após sua morte – no início do cristianismo ele era muitas vezes retratado como um jovem pastor e às vezes até como criança. É pouco provável que Jesus tenha tido fisionomia sequer próxima da utilizada, por exemplo, em boa parte de seus retratos em pinturas da Renascença.

[3] Esse ponto de vista, da busca pelo “Cristo interior”, é brilhantemente defendido pelo grande estudioso de mitologia Joseph Campbell em “O Poder do Mito”:

Ao dizer: “Aquele que beber da minha boca se tornará como eu e eu serei ele”, Jesus está falando do ponto de vista daquele Ser dos seres, a que chamamos Cristo, que é o ser de todos nós. Todo aquele que vive essa relação é como Cristo. Todo aquele que traz em sua vida a mensagem do Verbo é equivalente a Jesus.
Veja, há dois modos de pensar “Eu sou Deus”. Se você pensa: “Aqui, em minha presença física e em meu caráter temporal, eu sou Deus”, então você está louco e provocou um curto circuito na experiência. Você é Deus não em seu ego, mas em seu mais profundo ser, onde você é uno com o transcendente não dual.
A palavra “religião” significa religio, religar. Se dizemos que há uma única vida em nós ambos, então minha existência separada foi ligada à vida una, religio, religada. Isso está simbolizado nas imagens da religião, que representam aquela união.

[4] A busca espiritual é uma verdade em eterna construção, o que não é muito diferente da busca científica e filosófica. Nesse sentido, a afirmação de que todas as visões de Jesus são verdadeiras não deve ser compreendida literalmente – com uma espécie de politeísmo do Cristo –, mas no contexto da espiritualidade plena: todas as visões e todas as formas de religião emprestam a verdade do amor, do Ser ao qual todos tentamos nos religar. Nesse sentido, não é possível dizer “eu achei a Verdade” – mas é perfeitamente possível compreender quando achamos “uma verdade”.
A melhor coisa dessa busca, aquilo que realmente nos “completa”, é exatamente o reconhecimento e compreensão dessas verdades profundas que esbarramos pelo caminho – muitas vezes sem estar procurando diretamente por elas –; Verdades que estão muito além da capacidade de uma descrição meramente racional e linguística, mas que na experiência religiosa podem ser vislumbradas em toda sua majestosa profundidade, em toda sua luz.
Isso nada tem a ver com dogmas, templos ou santas tábuas, mas com perfumes que passam com as brisas pelo horizonte amplo, e que às vezes percebemos.

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Crédito da foto: Wikipedia (cristianismo arcaico)

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