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3.3.11

À espera da embarcação

Trecho do Projeto Ouroboros (a partir deste ponto irei revelar o nome de uma das personagens, até então apenas "S.", agora Sofia)

(Sofia) Pois então eu lhe pergunto, O., e alguém escolhe morrer estando saudável?

(O.) Estando saudável tanto do físico quanto da mente quanto do espírito, acredito que ninguém escolha morrer...

(Sofia) Então, nosso amigo I. falou que um recém-nascido não teve tempo de escolher nada, recebeu a dádiva da vida e juntamente com ela uma família, um corpo e um local de nascimento no planeta. Eu vou procurar estender a questão...
Ora, enquanto uns nascem com corpo perfeitamente saudável, em famílias ricas e em nações desenvolvidas, outros nascem com sérias deficiências como o câncer, em famílias pobres ou às vezes sem família alguma, e nas regiões mais miseráveis do planeta. Podemos crer que a partir de então, apesar da sorte ou azar no nascimento, tais crianças passarão a depender única e exclusivamente de suas próprias escolhas para seguir numa vida feliz e produtiva, ou numa vida infeliz e trágica... Mas na verdade não é bem assim, pois não temos nem nunca tivemos controle total sobre o nosso destino, sobre todos os eventos que ocorrem a nossa volta. E, mais fundamentalmente, tampouco temos controle sobre como e quando iremos morrer.
Toda essa falta de opções, todo esse lado aparentemente sombrio da existência obviamente já têm sido tema de discussões filosóficas há muito tempo. Eu gostaria de trazer a vocês o pensamento estóico e sua solução para esse tipo de aflição existencial.
Epicteto talvez tenha sido o maior exemplo de como um grego pôde ser bem sucedido na vida apesar das adversidades: nasceu escravo [1] e viveu a maior parte da vida em Roma tendo como seu “proprietário” um dos mais cruéis secretários do imperador Nero. Apesar disso, através da própria sabedoria, soube lidar com as adversidades e aprofundar o estoicismo entre seus inúmeros seguidores, já que terminou a vida como homem livre, devido ao reluzir de seus ensinamentos sobre a mente dos homens de sua época.
Diga-me, O., se ninguém saudável escolherá morrer, por outro lado, alguém pode saber quando e como irá partir desta vida?

(O.) Há alguns que pressentem a morte chegando, mas creio eu que ninguém tem a certeza absoluta do dia e hora da própria morte, tampouco como exatamente irá morrer...

(Sofia) Sendo a morte, portanto, uma viagem para alguma outra existência – ou para existência alguma –, poderíamos tomá-la metaforicamente como uma embarcação que devemos um dia tomar nalgum porto, mas que não temos como saber exatamente o dia nem a hora de sua chegada?

(O.) Acredito que seja uma boa metáfora.

(Sofia) Portanto, não sabendo a hora exata da viagem, mas sem termos tampouco como descobri-la, você diria que faz algum sentido nos preocuparmos com ela enquanto aqui estamos?

(O.) Acredito eu que não, mas as pessoas se angustiam com o desconhecido, com o fato de não saberem nem quando e nem para onde irão viajar...

(Sofia) Mas, supondo que não temos mesmo como saber disso com exatidão, não seria mais sábio nos abstermos dessa angústia e preocupação?

(O.) Certamente. Eis o motivo porque os sábios são tão poucos!

(Sofia) Mas não importa se são poucos, o que importa é que sua mensagem chegou até nós... Ao que me parece, este sábio escravo estóico sempre soube que sua liberdade estava assegurada em sua consciência, apesar de tudo.
Ou seja, as adversidades sempre existiram e sempre existirão, e a morte sempre será esta embarcação que um dia iremos tomar. Sabe-se lá para onde, sabe-se lá quando, mas iremos...
E em nossas vidas, à espera da embarcação, temos sempre tal liberdade de escolha em nossa consciência: ou nos angustiarmos com a morte, a maior das adversidades, ou simplesmente nos abstermos da preocupação com tudo aquilo que não nos é dado escolher.
Sob nosso controle, dentro do que nos é dado escolher, estão nossas opiniões, crenças, aspirações, desejos a as coisas que nos causam repulsa ou nos desagradam. Essas áreas são justificadamente da nossa conta porque estão sujeitas à nossa influência direta. Temos sempre a possibilidade de escolha quando se trata do conteúdo e da natureza de nossa vida interior.
Fora de nosso controle, entretanto, estão coisas como o tipo de corpo que temos, se nascemos ricos ou se tiramos a sorte grande e enriquecemos de repente, a maneira como somos vistos pelos outros ou qual é a nossa posição e status na sociedade, assim como tudo que se refere à morte. Devemos lembrar que estas coisas são externas e, portanto, não dependem de nós. Tentar controlar ou mudar o que não podemos só resulta em aflição e angústia.
As coisas sob o nosso poder estão naturalmente à nossa disposição, em nossa consciência, livres de qualquer restrição ou impedimento. As que não estão, porém, são frágeis, sujeitas à dependência, ou determinadas pelos caprichos ou ações dos outros. Ter a pretensão de controlar as opiniões e pensamentos alheios, as forças da natureza ou mesmo o tempo em que devemos tomar a embarcação só nos trará decepções e angústias desnecessárias. No fim, portanto, nossas escolhas são mesmo limitadas, mas não deveria haver nenhum bom motivo para nos afligirmos com isso... Muito pelo contrário, deveria ser motivo de alívio saber que existem muitas coisas que não estão nem nunca estarão sob nosso controle, que a natureza cuida de si mesma e que nessa existência muitas vezes somos mais espectadores do que diretores.
Dessa forma, com a sabedoria estóica, podemos viver focados nas preocupações certas – aquelas que podemos efetivamente controlar –, e sempre preparados para tomar a embarcação para a morte, seja quando e como ela eventualmente ancorar em nosso porto.
O que você acha dessa visão, O.?

(O.) Eu acho esplêndida, de fato algo que deveria ser ensinado a todas as pessoas, para que ao menos elas se dêem conta de que não devemos nos apegar tanto aos eventos fortuitos nem nos afligir tanto com as dificuldades no caminho, pois tanto um quanto outro muitas vezes estão além de nossa escolha e vão ocorrer independente do que façamos.

(P.) Também me agrada muito a visão estóica. No entanto, estamos falando essencialmente de filosofia [o debate anterior a exposição de Sofia se focava na justiça divina]...

(Sofia) Na verdade a filosofia estóica, e particularmente a de Epicteto, se confunde com a religião. Dentre as referências à deusa Fortuna e a um Zeus que era o Deus dos deuses, temos um misto de monoteísmo com uma profunda elaboração filosófica da aleatoriedade da existência. De fato, eu pessoalmente não vejo religião, filosofia e nem mesmo a ciência como campos hermeticamente separados um do outro, mas talvez isso ainda seja um outro debate...

***

[1] Conforme a nota existente no livro: Apesar de sua condição, conseguiu assistir as preleções do famoso estóico Gaio Musônio Rufo. De sua obra se conservam o Enchyridion, o "manual de Epicteto", e alguns discursos editados por seu discípulo Flavio Arriano.
Como viver uma vida plena, uma vida feliz? Como ser uma pessoa com boas qualidades morais? Responder a estas duas perguntas fundamentais foi à única paixão de Epicteto. Embora suas obras sejam menos conhecidas hoje em função do declínio do ensino da cultura clássica, tiveram enorme influência sobre as idéias dos principais pensadores da arte de viver durante quase dois mil anos.

***

Crédito da foto: Joaquín Vicente

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1 comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Sou editor do blog Ensaios e Manifestos e de passagem por aqui , gostei do teor dos textos. Gostaria de convidar o autor a conhecer a proposta e o teor do blog , assim como está convidado a nos enviar um texto de tema livre para a postagem , dentro do espírito do Blog de ser um banco de idéias , ensaios e manifestos
www.ensaiosemanifestos.blogspot.com
[ ]s !

4/3/11 07:57  

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