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7.10.11

A little moonwalk

Era uma manhã mais fria que o habitual de Janeiro de 2008, e Idoya, uma macaquinha de não mais que 5,5kg e 80cm de altura, era o primata no centro das atenções de um enorme grupo de outros primatas espremidos num laboratório da Universidade de Duke, em Durham (Carolina do Norte/EUA). Com fotógrafos e repórteres do New York Times documentando cada momento da preparação, Idoya foi gentilmente colocada pelos pesquisadores numa esteira hidráulica. Vários cabos conectavam neurochips implantados meses antes em seu cérebro a um eletroencéfalograma e inúmeros computadores. Na parede imediatamente a sua frente, a simpática macaquinha já podia ver imagens de alta definição das pernas de um CB-1, um robô humanoide de 90kg e 1,5m suspenso no ar em um outro laboratório científico do outro lado do planeta – mais precisamente em Kyoto (Japão).

Era um momento histórico, ou pelo menos era o que torcia Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro pioneiro nos estudos mais aprofundados das interfaces cérebro máquina (ICMs). Nas últimas décadas, Nicolelis havia passado por um longo e penoso caminho, bem ao modo dos grandes pioneiros da ciência: com muitos e muitos erros, muitas e muitas tentativas, e apenas alguns acertos aqui e ali... Mas, felizmente, a qualidade dos acertos suplantaram em muito a quantidade de erros.

Desde os primórdios do estudo do cérebro – em roedores, primatas e humanos – os cientistas tenderam a crer que o cérebro possuía regiões e neurônios específicos para cada uma das atividades do corpo físico: havia então a região dos neurônios relacionados ao equilíbrio, outra aos responsáveis por codificar informações sensoriais, ainda outros neurônios para cuidar do movimento de um dedo, uma mão, um braço, uma perna, etc. Mas Nicolelis muito cedo percebeu que o cérebro era muito mais incrível do que uma empresa dividida em setores e departamentos responsáveis por cada uma dessas tarefas – ele era maleável, adaptável, uma verdadeira máquina miraculosa!

Somente estudando grupos de centenas e milhares de neurônios simultaneamente que Nicolelis, paulistano e torcedor do Palmeiras, pôde finalmente avançar em suas leituras cada vez mais precisas do código elétrico gerado pelo cérebro: como numa final de campeonato de futebol, quando todos os torcedores de um time cantam como se fossem um só, assim também operavam os neurônios...

A esteira começou a rodar, e Idoya prontamente começou a caminhar. Não se tratava de trabalho escravo: a macaquinha adorava caminhar um pouco, pois sabia que os outros primatas sempre a recompensavam com deliciosas uvas-passas e biscoitos, de modo que nem os flashes dos fotógrafos a deixaram tímida naquele dia. Nos computadores, um programa de computador com um algoritmo especialmente criado para tal experiência começava a extrair os comandos motores específicos do movimento das pernas de Idoya, filtrados de uma verdadeira avalanche cerebral.

Em Kyoto, o CB-1 começava a caminhar em pleno ar, seguindo os comandos elétricos do cérebro da macaquinha, que precisavam atravessar o planeta até o Japão e retornar como um feedback visual em cerca de 250ms (pois as reações conscientes operam numa janela de até meio segundo, ou 500ms). Uma etapa importante da experiência era a certificação de que a troca de informações entre Durham e Kyoto ficasse abaixo da casa de 250ms, e o cientista Gordon Cheng estava radiante: ele havia cumprido o prometido, estavam na casa dos 230ms!

Mas isso não era tudo. Chegava a vez da simpática macaquinha fazer o seu “pequeno passeio pela lua” (a little moonwalk), uma alusão de Nicolelis a importância do experimento – um pequeno passo para Idoya, um grande passo para todos os primatas... “Ao meu sinal, desligue a esteira... Ok, agora!”

Enquanto a esteira parava, fazendo com que a macaquinha assumisse uma postura semiereta e imóvel, todos os primatas em Durham fixaram os olhos no monitor que exibia o robô em Kyoto. Até Idoya parecia intrigada, pois continuou a olhar atentamente para as imagens à sua frente. Talvez ela realmente quisesse provar algo, pois tudo o que puderam observar do Japão era aquele distinto robô humanoide andando e andando, suspenso no ar, seguindo as instruções detalhadas que continuavam a brotar de algum canto do cérebro de Idoya. Conforme o próprio Nicolelis relatou em seu livro [1]: “Cada passo finamente esculpido, apenas algumas centenas de milisegundos antes, pelo sopro de vida elétrico que emergia, quase como presente divino, de um radiante, embora agora liberto, cérebro de primata.”

Foi, sem dúvida, um grande passo para o conhecimento humano. Aqueles que hoje não se dão conta disso, certamente um dia se darão – nem que seja apenas quando Nicolelis ganhar o prêmio Nobel, algo que muitos dão por quase certo... Pelo fato de nenhuma parte do corpo físico de Idoya ter sido envolvida na operação desta ICM, pelo menos a partir do momento onde a esteira foi desligada, esse e outros experimentos [2] sugerem que, no futuro, pacientes severamente paralisados devido a uma lesão da medula espinhal poderão tirar proveito desta tecnologia. E isso seria, é claro, só o começo...

Desde o advento do eletroencéfalograma (EEG) e tecnologias similares, os cientistas tem conseguido observar, maravilhados, o tráfego eletromagnético que se opera incessantemente nos cérebros dos seres vivos. Postularem eles, não sem razão, que todo nosso corpo físico é mera ferramenta do cérebro, comandado por esse divino condutor da mesma forma que robôs humanoides passam a ser comandados, à distância, por cérebros de pequenos primatas. Porém, como garantir que o cérebro não é, ele também, apenas mais uma ferramenta no meio do processo?

Hoje sabemos como fazer com que macaquinhas caminhem em esteiras, oferecendo frutas e biscoitos como recompensa. Mas, saberemos um dia porque alguém decide se suicidar de um penhasco? Ou porque bombeiros arriscam a própria vida para salvar vidas alheias em grandes acidentes? Ou porque alguém algum dia resolveu pintar um quadro ou escrever poesia? Ou, finalmente, o que alguém compreende exatamente por “vermelho”? O maior paradoxo da ciência moderna consiste no fato da consciência ter sido reconhecida como um processo evidente dos seres racionais (e até irracionais), para então ter sido reduzida ao mero tilintar dos neurônios, num processo que até hoje tende a ser descrito como ocorre no experimento de Nicolelis: como se tudo o que buscássemos na vida fossem uvas-passa e pedaços de biscoito...

Um dos títulos mais inspirados de uma teoria científica se chama “o problema difícil da consciência” – através dela, diversos cientistas de bom senso continuam a debater sobre o que vem a ser exatamente a consciência e, sobretudo, a vontade. Talvez ainda levem anos, séculos, nessa discussão, mas ninguém disse que seria simples – de fato, é este um dos grandes mistérios de nossa existência.

Observar o baile elétrico dos neurônios e dizer que se chegou à origem da vontade é o mesmo que observar um curto-circuito em um poste de energia e afirmar: “é dali, é dali que vem toda a energia da cidade!”. Mas, fato é que ainda não sabemos onde fica a usina de nossa própria vontade. Pode ser um tilintar “meio aleatório” dos neurônios, pode ser um “fantasminha camarada” a pilotar um cérebro, ou pode ser algo ainda mais sutil, elegante, maleável, além do alcance de nossa ciência e racionalidade, de nossa filosofia e espiritualidade atuais... Pode ser algo que esteve profundamente oculto por toda a história da humanidade, mas que no fim termine por se comprovar como a única coisa que realmente somos, a nossa essência liberta, como um cérebro com asas de águia a planar pelo Cosmos, como uma macaquinha esperta e ágil, que insiste em escapar a nossa detecção, mas que pode muito bem estar agora mesmo incorporando primatas... ou robôs.

***

[1] Fiz o que pude para resumir da melhor forma possível a descrição do experimento de Idoya conforme consta em “Muito além do nosso eu” (Cia. das Letras). Se quer um estudo mais minucioso (e abrangente) do assunto abordado, não deixe de ler o livro!

[2] Dias atrás Nicolelis e sua equipe anunciaram outro estudo surpreendente que envolve um feedback não apenas visual, mas que incluí também o sentido do tato. Ele foi largamente anunciado na mídia, e ganhou a capa da revista Science, assim como a publicação na conceituada revista Nature.

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Crédito das fotos: [topo] treklens.com; [ao longo] Fábio Barriel (foto de Miguel Nicolelis)

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