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15.12.11

Tendências da fé, parte 2

« continuando da parte 1

Texto de Adjiedj Bakas e Minne Buwalda em "O futuro de Deus” (A Girafa) – pgs. 62 a 65. Tradução de Silmara Oliveria. As notas ao final são minhas.

América Latina
Originalmente, antes de os conquistadores espanhóis e outros europeus colonizarem o continente, a América Latina era dominada por religiões indígenas, algumas delas bem pequenas e locais, e outras maiores, como as religiões dos povos Maias e Astecas. Os europeus trouxeram o Cristianismo para o continente [1] e depois outras influências religiosas foram introduzidas, por exemplo, a tradição Yorubá, que foi trazida com os escravos importados da África.

Nas décadas de 1970 e 1980, a América Latina presenciou o nascimento e o crescimento da chamada Teologia da Libertação, um movimento dentro do Cristianismo que interpreta a Bíblia em termos de libertação da injustiça política, econômica e social. Tornou-se popular principalmente na Igreja Católica Romana, mas depois virou um movimento interdenominacional. Os padres se tornaram politizados, em uma tentativa de emancipar e elevar as massas, empregando palavras como “luta de classe” em seus sermões e reunindo seus seguidores em megaigrejas e práticas ao ar livre.

No início, a Igreja Católica via esse movimento como uma renovação da mensagem de Cristo, mas quando a Teologia da Libertação ficou mais marxista, o Vaticano reagiu, excomungando alguns de seus porta-vozes mais importantes [2]. Quando, na década de 1990, o neoliberalismo assumiu o cenário mundial e o Marxismo foi de repente visto como ultrapassado, a Teologia da Libertação perdeu grande parte de sua influência.

Desde então, a função da emancipação da Teologia da Libertação foi assumida pelo Cristianismo Evangélico e pelas Igrejas Carismáticas. Essas igrejas (por exemplo, a Igreja Pentecostal), não enfatizam a luta de classe e a emancipação de classe, mas se concentram na capacitação e na realização pessoais. Essas igrejas não são hierárquicas, como a Igreja Católica, e portanto “praticam o que pregam” – uma estratégia convincente [3].

Durante a sua história, a maioria dos países da América Latina recebeu novos grupos de imigrantes, o que resultou em um tipo de sociedade multicultural na qual as pessoas tendem a tolerar mais outras religiões. Por exemplo, o Suriname, onde nasceu um dos autores deste livro, é um país cuja população inclui descendentes de colonizadores brancos, escravos negros, trabalhadores indianos e indonésios, refugiados judeus e comerciantes chineses, entre outros. Esses grupos realizaram casamentos entre si, mas as religiões originais dos respectivos grupos ainda existem em Paramaribo, a capital do país. De fato, a mesquita e a sinagoga estão localizadas uma ao lado da outra e não há conflitos religiosos. O Oriente Médio deveria considerar essa tolerância como exemplo! [4]

Um outro fenômeno que pode ser visto com frequência no Suriname é que tanto os cristãos quanto os judeus e hindus recorrem ao Winti, tradição afro-surinamesa ligada ao Candomblé, Vudu e Santeria, à procura de cura ou magia, quando sua religião principal não oferece uma solução forte o suficiente para o seu problema [5]. A cultura latino-americana e os “novos países”, como o Brasil, que ainda atraem muitos migrantes, mostram hoje um caminho com tendência à tolerância religiosa e às práticas espirituais híbridas. Em um mundo que está cada vez mais multicultural, esses modelos podem ser vistos como “o futuro de Deus” [6].

Como o Cristianismo foi a religião dos colonizadores que dominaram a América, ele se tornou a fé principal; Porém, elementos e influências indígenas ancestrais e locais foram integrados e formaram-se novos rituais e práticas. Mais recentemente, com o fortalecimento da autoconfiança e do orgulho dos povos nativos da América Latina, a cultura, incluindo suas religiões e costumes éticos originais, ganhou mais destaque novamente. Na Bolívia, por exemplo, nas áreas montanhosas onde as leis modernas nunca tiveram muita influência, os antigos costumes nativos de praticar justiça estão sendo utilizados novamente, em um processo de descolonização do sistema legal. Entretanto, isso realmente significa que, quando alguém é pego roubando em um vilarejo na região montanhosa da Bolívia, o gatuno corre o risco de ser açoitado no local pelas pessoas ao redor.

No Brasil, o uso de plantas psicoativas em rituais religiosos está se tornando mais comum nas tribos indígenas novamente, não apenas na região da Amazônia, mas também nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo [7]. No México, a adoração de La Santa Muerte (A Santa Morte) é o movimento religioso que mais cresce atualmente, com cerca de 10 milhões de seguidores. Obviamente, há um “Anjo da Morte” na tradição cristã, mas La Santa Muerte da Igreja Apostólica Tradicional do México provavelmente se refere ao deus asteca do submundo, Mictlanteuchitili [8]. Em todos os cantos da América do Sul, estão sendo reintroduzidos elementos das religiões e éticas pré-coloniais.

África
A história da África pode ser comparada a história da América Latina, exceto pelo fato de       que os conquistadores trouxeram ao continente não apenas o Cristianismo, como também o Islã. Uma linha que vai se Serra Leoa na parte ocidental, passa pela Nigéria e pelo Sudão e segue até a região do Vale do Rift na Etiópia, divide os muçulmanos no norte dos cristãos no sul. A região da África quê se parece com um chifre e as áreas costeiras do Quênia e Tanzânia são dos muçulmanos novamente.

No período em que os conquistadores muçulmanos e os colonizadores europeus foram para a África, havia muitas religiões tribais no continente. Algumas delas eram animistas, como a do povo San ao sul, mas a maioria das religiões africanas era teísta. Muitas vezes o deus criador supremo sequer era venerado, e sim os deuses e espíritos inferiores [9]. Em muitas religiões africanas, principalmente entre os sudaneses, surgiu uma tradição de soberania ou chefia sagrada, na qual a posição do rei ou chefe era justificada pela lei divina. A religião egípcia clássica também tornou o seu faraó um ser divino, uma característica influenciada pelas culturas sudanesas.

Algumas religiões africanas possuem mais de um deus, por exemplo, a religião Yorubá da Nigéria e de Benim, cujos deuses são chamados de orixás. Essas divindades representam energias fundamentais, atitudes ou formas de abordar a vida, e nos séculos 17 e 18, foram trazidas para a América Latina com os escravos, onde ainda formam o panteão de religiões latino-africanas, como a Umbanda e o Candomblé (no Brasil), Vodu (no Haiti), Winti (no Suriname) e Santeria (em Cuba).

Quando os árabes e os europeus conquistaram a África, as antigas religiões perderam força e foram substituídas pelo Islã e Cristianismo. A única exceção foi à Etiópia, que tem a tradição do Cristianismo Cóptico, que volta aos tempos bíblicos [10]. [...] Atualmente, a África está na linha de frente da luta entre o Cristianismo e o Islã. Essa luta se intensificou recentemente, com argumentos mais fortes para encorajar a conversão de ambos os lados, com ódio renovado e batalhas sangrentas em países como o Sudão e a Nigéria [11].

Assim como na América Latina, o Cristianismo Evangélico e o Pentecostalismo crescem na África. Uma das razões dessa popularização pode ser a prática religiosa de entrar em transe ao realizar um ato religioso, adotada por quase todas as religiões originais africanas, que se encaixa bem nas práticas “extáticas” dessas igrejas cristãs. Uma outra explicação é que a Igreja Pentecostal pode servir como um veículo para que os membros das classes mais inferiores se libertem, não por meio de uma revolução socioeconômica como a Teologia da Libertação prega, mas pela integração em um movimento religioso que oferece grande mobilidade social interna. Os ideais sociais embutidos no Pentecostalismo incentivam que o pobre rejeite a vida de maus hábitos e excessos e favoreça a economia e a responsabilidade, principalmente em relação á vida em família.

» Na continuação, tendências do mundo árabe, Índia e China.

***

[1] Talvez fosse melhor dizer: forçaram o cristianismo goela abaixo dos nativos, isto é, dos que sobreviveram as chacinas...

[2] Por isso que a religião é livre, e a igreja não. Resta saber de onde tiraram a ideia de que Jesus fundou uma igreja...

[3] Obviamente que algumas delas na prática são hierárquicas, pois têm uma “cúpula de liderança” claramente definida. Acredito que não preciso nem dizem quais são, basta ligar a TV aberta na madrugada para assistir a vários dos “chefes de igrejas” discursando, de acordo com o canal sintonizado.

[4] Se fosse viável retirar todos os atuais moradores das zonas de conflito no Oriente Médio e os realocar, por exemplo, nas planícies da Austrália, é bem provável que os conflitos diminuiriam em muito. Às vezes, a “terra santa” é mais um fardo do que uma benção.

[5] As grandes religiões têm muito o quê aprender, em termos de tolerância e ecumenismo, com as tradições religiosas africanas – que, em sua maioria, são bem mais antigas; pelo menos anteriores ao cristianismo e ao islamismo. Também são religiões “sem igreja”, que podem ser praticadas ao ar livre, numa montanha, numa planície, como era o cristianismo primitivo (basicamente, o gnosticismo).

[6] E, talvez, o ditado popular “Deus é brasileiro” acabe fazendo todo o sentido – no futuro...

[7] No caso, os autores estão se referindo principalmente ao Santo Daime.

[8] A Igreja Católica se encontra num grande dilema no México: permitir que o catolicismo local se “misture” com práticas religiosas indígenas antigas, ou perder fiéis para as igrejas evangélicas, em franco crescimento no país – particularmente nas zonas mais pobres.

[9] Acredita-se que o monoteísmo surgiu com o judaísmo, mas se considerarmos que os mitos de doutrinas religiosas ancestrais já compreendiam um “deus criador supremo”, e “deuses secundários inferiores”, pode-se dizer que toda religião teísta já nasceu monoteísta (exceto por algumas poucas que consideravam dois deuses supremos antagônicos, “o bem contra o mal”). Podemos também nos lembrar do estoico Epicteto, que se referia a Zeus como “Deus dos deuses”.
No caso do catolicismo, por exemplo, os anjos e santos vieram preencher a lacuna dos “deuses secundários”. Daí a facilidade com que os escravos africanos que chegaram ao Brasil “adotaram” a religião: cada santo correspondendo a um orixá, muito simples!

[10] O que também inspirou o surgimento de uma curiosa religião jamaicana.

[11] Tudo isso, como sempre, parcamente anunciado pela mídia global. O mundo praticamente ignora as regiões africanas onde não há progresso nem petróleo. E pensar que todos viemos de lá...

***

Crédito das imagens: [topo] Axel Koester/Corbis (o culto de La Santa Muerte); [ao longo] Ulysses de Castro (orixás do Dique do Tororó, em Salvador).

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