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29.3.12

Comentário: que é, afinal, a vida?

Comentário das respostas da pergunta “que é, afinal, a vida ?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] O maior evento da história da Terra ocorreu há bilhões de anos: ainda antes que o planeta completasse seu primeiro bilhão de anos, organismos unicelulares surgiram, de alguma forma, da matéria inorgânica, provavelmente em pequenos lagos aquecidos pelo calor do núcleo a vazar pela crosta... Mas, o tipo de matéria que formava esses organismos primordiais não foi forjado na Terra, mas sim no núcleo de estrelas como o nosso Sol. Na verdade, não sabemos nem se tal matéria já se encontrava no planeta desde a origem, ou se chegou até nós, literalmente, na cauda dos cometas.

Segundo a teoria da panspermia, boa parte ou mesmo a totalidade do tipo de matéria que possibilitou o surgimento das primeiras células vivas chegou a nós incrustada em asteroides que se chocaram com a Terra no período de centenas de milhões de anos após sua formação. Nós buscamos pelos alienígenas lá fora, mas de certa forma sempre fomos, nós mesmos, os próprios alienígenas: filhos das estrelas, parte dos elementos pesados que são somente formados, no universo conhecido, nas reações nucleares do núcleo dos sóis.

Chris Impey é um dos primeiros astrobiólogos, cientistas que se especializaram em estudar as possibilidades de vida alienígena que parece extremamente viável de ser encontrada pelo Cosmos afora: organismos simples, talvez mesmo unicelulares, podem realmente ser ubíquos pela imensidão da noite infestada de berçários de vida. Em seu excelente O universo vivo, ele explica [1]:

“A vida hoje não se parece com substâncias químicas flutuando em uma lagoa salgada, ou com moléculas complexas aprisionadas em uma superfície mineral. Todas as formas de vida, da menor bactéria até a sequóia mais imponente, são feitas de células. Depois que uma célula primitiva foi criada, o caminho para o alto ficou claro. Certamente ir de uma bactéria a um chimpanzé é um passo menor do que ir de uma mistura de aminoácidos a uma bactéria. Saber como se formaram às primeiras células é vital para que a ciência compreenda a origem da vida.

Mas essa questão ainda permanece em aberto. Apesar de nos dias atuais a ciência pelo menos fazer uma ideia básica de como o processo provavelmente se conduziu, nunca vimos moléculas se reproduzindo, nunca produzimos uma célula sequer a partir de elementos sem vida.”

Essa questão tem uma história longa e turbulenta, estimulando poetas e céticos, filósofos e mecânicos quânticos, biólogos e místicos, a oferecer uma gama de explicações radicalmente diferentes. “A vida é um fenômeno único e fundamentalmente diferente da não vida”, opinou o filósofo francês Henri Bergson. Bergson teorizou que a vida é irresistivelmente impelida a níveis cada vez mais altos de realização evolutiva por uma misteriosa força vital (élan vital), que é inteiramente ausente na matéria não viva.

Já para o cético Robert Morrison, a palavra vida é apenas uma convenção linguística que empregamos para descrever uma classe especial de objetos materiais: “A vida não é uma coisa ou um fluido mais do que o calor o é. O que observamos são alguns conjuntos incomuns de objetos separados do resto do mundo por certas propriedades peculiares, como crescimento, reprodução e maneiras especiais de lidar com a energia. Esses objetos, escolhemos chamar de coisas vivas.”

A arma secreta da vida, concluiu o pioneiro da física quântica Erwin Schrödinger num livro intitulado What Is Life? [O Que é a Vida?], é sua capacidade única de metabolizar: exportar desordem para o ambiente circundante em forma de calor irradiado e excrementos enquanto importa ordem desse ambiente em forma de alimento e energia. O livro de Schrödinger foi uma inspiração para toda uma geração de cientistas que criaram, basicamente a partir do zero, o enorme empreendimento científico hoje conhecido como biologia molecular.

James Watson, um dos descobridores do DNA, também caminhou nos ombros de um gigante: “Schrödinger argumentou que a vida pode ser pensada em termos de armazenamento e transmissão de informações biológicas. Os cromossomos seriam assim meros portadores de informação.” – Este conceito de pensar a vida como informação biológica teve impacto decisivo nas pesquisas de Watson, e quando este finalmente descobriu o DNA, pensou ter finalmente resolvido um dos grandes mistérios da ciência:

“Nossa descoberta põe fim a um debate tão antigo quanto à espécie humana: Será que a vida tem alguma essência mágica, mística, ou é, como qualquer reação química produzida numa aula de ciências, o produto de processos físicos e químicos normais? Haverá alguma coisa divina numa célula que a traga a vida? A dupla hélice respondeu a essa pergunta com um definitivo Não.”

Ironicamente, seu mentor intelectual (Schrödinger) chegou precisamente à conclusão oposta em What Is Life?, ao observar que a característica que define a vida – sua capacidade para produzir e prolongar a existência de uma ilha de ordem contínua, incessantemente fustigada por um mar de aleatoriedade e de desordem movida a entropia – é uma forte evidência da existência de um “novo tipo de lei física” que governa o comportamento da matéria viva.

Assim como o gelo formado a partir da água dentro de nossa geladeira é uma “ordenação” das moléculas de água ao custo de uma “desordem” ainda maior, causada pelo calor expelido de dentro para fora (pelo menos quando ela esta ligada na tomada), biologicamente a vida não desafia a segunda lei da termodinâmica, que afirma que o universo inteiro caminha sempre para a entropia, ou seja, para “a desordem das informações”. E, de fato, tudo parece ser constituído puramente de informação.

John Wheeler, um físico americano, cunhou a expressão “o it que vem do bit”. Em suas palavras: “Cada it – cada partícula, cada campo de força e até mesmo o próprio continuum espaço-tempo – deriva inteiramente sua função, seu significado, sua própria existência – mesmo que em alguns contextos indiretamente – de respostas induzidas por equipamento a perguntas sim ou não, escolhas binárias, bits. O it que vem do bit simboliza a ideia de que cada item do mundo físico tem no fundo – bem no fundo, na maioria dos casos – uma fonte e uma explicação imateriais; que aquilo que chamamos de realidade vem em última análise da colocação de perguntas sim-não, e do registro de respostas evocadas por equipamento; em resumo, que todas as coisas físicas são informacional-teóricas na origem.”

Esse tipo de consideração metafísica demonstra como alguns físicos modernos não têm um pensamento tão distante de certos filósofos e espiritualistas, embora usem outros termos. Se tudo que há é informação, e se tudo o que essa informação forma é matéria, ainda falta descobrirmos o que diabos são os outros 96% da matéria e energia do universo, que não interagem com a luz (não refletem fótons), segundo a novíssima “teoria quente” da cosmologia: a Matéria Escura. Se, assim como Dawkins teorizou, mesmo os nossos pensamentos seguem a lei da seleção natural, através dos memes (alguns diriam: os genes místicos), e têm nascimento, vida e morte, falta-nos desvendar se a vida é, afinal, apenas algo mais que moléculas de carbono, água e outros elementos em uma configuração fortuita, ou se nossa mente, nossa consciência, nosso élan vital, é formado por algum tipo de matéria ainda totalmente desconhecida, e profundamente invisível (exatamente por não interagir com a luz).

E, se acaso um dia esbarremos numa consciência formada por matéria sutil demais para que nossa tecnologia a houvesse descoberto anteriormente, tal evento, longe de invalidar mais de um século de desenvolvimento da biologia, apenas a elevará a um patamar ainda mais grandioso, ainda mais fantástico, ainda mais complexo... Será que um dia descobriremos, afinal, o que é que interpreta informações em nosso cérebro, o que é que percebe subjetivamente a “vermelhidão do vermelho”, o que é que se maravilha com uma música ou um poema, o que é que olha de volta para a imensidão do Cosmos e se pergunta: “para que, para que, afinal, tudo isso?”. E será que, mesmo isso, será apenas um sim contra um não?

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[1] Todas as citações deste artigo/comentário foram retiradas deste livro de Impey, publicado no Brasil pela Larousse, e também de O universo inteligente, de James Gardner, publicado pela Cultrix/Pensamento. Ambos são recomendados para quem se interessa por um debate genuinamente filosófico e científico sobre o assunto.

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Crédito da imagem: Tom Grill/Corbis

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