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31.5.12

A lâmpada centenária

O comercial acima tem, talvez, o conjunto dos clichês mais utilizados pela publicidade atual para que um homem troque de carro. Mas não vou falar aqui das aeromoças de rosa dando o "sinal de ok", nem sobre como o sujeito parece "deixar de existir" enquanto não tem um carro adequado: o que quero destacar é que o consumidor já tinha um carro, provavelmente não tão antigo assim, mas é incentivado a comprar um novo.

Na época atual, onde todos parecem seguir o deus do consumo, trocar de carro a cada 1-2 anos, e de celular a cada 6-12 meses, parece ser algo não apenas perfeitamente natural, como enormemente incentivado por todo tipo de propaganda... Engraçado que todos enalteçam os benefícios de se estar sempre "atualizado", com um carro zero, um widget "de ponta", e ainda falem em sustentabilidade, em ecologia, em um "mundo verde"...

Ora, tudo o que é consumido deve ser descartado, deve virar lixo. Até aí tudo bem, contanto que o lixo possa ser reciclado, ou que não se avolume tão depressa assim. O nosso problema é, portanto, um modelo econômico que foi planejado para ser o exato oposto da sustentabilidade: é difícil mudar tal paradigma quando as mesmas grandes empresas que ditam a economia mundial, e se dizem favoráveis a sustentabilidade, muitas vezes continuam investindo pesado na prática da obsolescência programada.

Por exemplo, a lógica da indústria de computadores é semelhante à das montadoras de carros. Ambas lançam novos produtos para nos fazer descartar os antigos. Essa estratégia foi criada na década de 1920 por Alfred Sloan, então presidente da General Motors. Sloan decidiu seduzir os consumidores para que trocassem de carro com frequência, apelando para a mudança anual de modelos, cores e acessórios. Bill Gates, o fundador da Microsoft, adotou a mesma fórmula nas atualizações do Windows, e o fabricante de chips Intel usa o mesmo procedimento para lançar seus chips. Não é à toa que o livro de cabeceira de Gates é a autobiografia de Sloan.

Você pode achar que isso é perfeitamente comum e corriqueiro, que faz parte da economia industrial e etc. De certa forma, terá total razão, mas a grande questão é que, de tão seduzidos pelas maravilhas das novas tecnologias, muitas vezes esquecemos que elas não são tão "de ponta" assim... Se já são maravilhosas, poderiam ser ainda muito mais, poderiam mesmo durar anos, décadas, e quem sabe até, séculos...

Em Livermore, na Califórnia, um corpo de bombeiros possuí uma lâmpada que está acesa já há mais de um século. Difícil de acreditar? O Cartel Phoebus, fundado em 1924 por empresas como General Eletric, Philips e Osram (todas ainda existentes), determinou que todas as grandes produtoras de lâmpadas elétricas propositadamente reduzissem seu tempo de duração para 1.000 horas. E, até hoje, isso não mudou muito... Você acha que tem mesmo tanta tecnologia em casa? A lâmpada centenária de Livermore talvez lhe faça mudar de paradigma:

Comprar, descartar, comprar. Documentário espanhol (legendado) sobre a história da obsolência programada, com cerca de 52min. de duração.

***

» Veja também: os 10 grandes deuses do Supermercado

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30.5.12

Pequeno pássaro

Então desejas elevar-te ao patamar dos santos
E habitar com tua alma ao topo da colina
Acima do pântano dos prantos
E sorrir ao Sol que te ilumina?

Mas, que sabes tu de tal caminho,
Senão o que tem lido nessas palavras
Em desalinho?

Essa tal magia
Essa tal linguagem que procuravas
Não está lá fora atrás do horizonte
Mas antes no próprio ninho
De teu ser:
A alma é a fonte

Ela é pássaro que voou
Para longe de teus próprios pensamentos
Quando estes a afugentaram...

A cada olhar postado em julgamento,
Ela voou
A cada olhar desviado em indiferença,
Ela voou
A cada olhar cheio de desejos desenfreados,
Ela voou...
Tudo o que pensou – foi tudo o que ela viu

Agora, olha para ti:
O homem no espelho d’água
O ser perdido
Na busca de ser achado...

E fazer do pântano a fonte cristalina:
Do negrume do fundo
O calcário a refletir o Infinito
Em cada gota do mundo

Como poderias haver avançado em tal caminho
Se o pequeno pássaro,
O tesouro mais precioso,
Era afugentado sem que percebesses?

Chama agora o pássaro de volta:
Assobia para a alegria do ser
E põe-te na escolta
De tua própria alma...
Sim! Faça-a grandiosa,
Ensina-a a voar adentro,
Para que valha a pena caminhar...


(silêncio)

Shhh...
Ouve agora
O pássaro a piar?
Dá, então, o primeiro passo...
Vai, e voa!
Voa alto pelo ar...
Até a colina
Até o horizonte
Até que consigas finalmente
Se reencontrar...


raph’12’A.’.A.’.

***

Crédito da imagem: Tomas Rodriguez/Corbis

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Ter bondade é ter coragem...

E Wagner Moura teve a bondade de subir num palco trazendo antes não a voz, mas a alma de um grande artista, que realmente ama a poesia de Renato Russo. Dessa forma, se conforme um outro poeta já disse, tudo vale a pena se a alma não é pequena, então valeu a coragem, valeu a bondade, valeu o tributo...

Há tempos - Legião Urbana. Ao vivo no show comemorando os 30 anos da banda, em São Paulo - 29/05/12. Talvez a última vez que os companheiros de Renato Russo cantaram essas músicas juntos.


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29.5.12

Os dois mundos de Rumi

Jalal ud-Din Rumi, grande poeta e místico sufi, fundador da primeira escola dos dervixes rodopiantes, viveu entre dois mundos. Rumi fora um grande teólogo e mestre espiritual persa, seguindo a tradição de seu pai, mas foi como o Revelador da Religião (“Jalal ud-Din”), que tornou-se grandioso...

O que Rumi revelava e refletia, tal qual a lua reflete aos raios do sol, era a sabedoria de Shams ud-Din de Tabriz, o Sol da Religião (“Shams ud-Din”): místico “errante” no estilo dos mitos acerca de Lao Tsé, que vagava pela Pérsia e, tendo convivido com Rumi por dois longos momentos, tornou-se para sempre o seu amado, no real sentido do “ser amado”.

Shams nada escreveu – foi Rumi quem escreveu por ele, quem refletiu sua luz... Quando foi privado pela segunda vez da companhia de Shams (na primeira ele havia se exilado por vontade própria, na segunda foi assassinado por discípulos ortodoxos de Rumi), o grande dervixe passou a dançar e compor poemas melódicos continuamente [1], conforme descreveu seu filho (Sultan Walad):

Noite e dia, em êxtase ele dançava, na terra girava como giram os céus. Rumo as estrelas lançava seus gritos e não havia quem não os escutasse. Aos músicos provia ouro e prata, e tudo mais de seu entregava. Nem por um instante ficava sem música e sem transe, nem por um momento descansava.

Houve protestos, no mundo inteiro ressoava o tumulto. A todos surpreendia que o grande sacerdote do Islam, tornado senhor dos dois universos, vivesse agora delirando como um louco, dentro e fora de casa. Por sua causa, da religião e da fé o povo se afastara; e ele, enlouquecido de amor.

Os que antes recitavam a palavra de Deus agora cantavam versos e partiam com os músicos... [2]

Com Rumi, e toda a dor da perda de seu sol amado, fincou-se neste mundo as bases do grande misticismo sufi, e também das danças dervixes, onde os místicos rodopiam em torno de um centro imaginário, da mesma forma que os planetas rodopiam em torno do sol.

José Jorge de Carvalho, tradutor das poesias de Rumi para o português, nos faz um alerta: “É importante que o leitor faça ideia do que seja um gazal [3] de Rumi para avaliar o que perde ao ler a presente tradução, ao tempo de poder valorizar, esperamos, o quanto ainda pode receber de significado e fruição poética. Em qualquer tradução de um gazal persa para uma língua ocidental, sacrifica-se muito esteticamente: a sonoridade, o ritmo do verso, as várias formas de rima, as aliterações, os jogos de palavras.” [2]

O que se segue, portanto, é o que sobrou da luz de sol refletida pela lua de Rumi; e que, ainda assim, delineia com espantosa exatidão os dois mundos em que o grande sufi viveu, ao menos a quem tem olhos para os ver... Estes são dois poemas de Rumi, e cada um nos traz um de seus mundos:

[A evolução da forma]

Toda forma que vês
tem seu arquétipo no mundo sem-lugar.
Se a forma esvanece, não importa,
permanece o original.

As belas figuras que viste,
as sábias palavras que escutaste,
não te entristeças se pereceram.

Enquanto a fonte é abundante,
o rio dá água sem cessar.
Por que te lamentas se nenhum dos dois se detém?

A alma é a fonte,
e as coisas criadas, os rios.
Enquanto a fonte jorra, correm os rios.
Tira da cabeça todo o pesar
e sorve aos borbotões a água deste rio.
Que a água não seca, ela não tem fim.

Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode ser isto segredo para ti? [4]

Finalmente foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo – um punhado de pó –
vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.

Passa de novo pela vida angelical,
entra naquele oceano,
e que tua gota se torne mar,
cem vezes maior que o Mar de Oman. [5]

Abandona este filho que chamas corpo
e diz sempre “Um” com toda a alma.
Se teu corpo envelhece, que importa?
Ainda é fresca tua alma.

***

[O mundo além das palavras]

Dentro deste mundo há outro mundo
impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
nem a primavera dá lugar ao outono.

Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
o lobo, em belo pastor.

Para mudar a paisagem,
basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares,
basta expressar o desejo.

Fixa o olhar no deserto de espinhos.
– Já é agora um jardim florido!
Vês aquele bloco de pedra no chão?
– Já se move e dele surge a mina de rubis!

Lava tuas mãos e teu rosto
nas águas deste lugar,
que aqui te preparam um fausto banquete.
Aqui, todo o ser gera um anjo;
e quando me veem subindo aos céus
os cadáveres retornam à vida.

Decerto vistes as árvores crescendo da terra,
mas quem há de ter visto o nascimento do Paraíso?
Viste também as águas dos mares e dos rios,
mas quem há de ter visto nascer
de uma única gota d’água
uma centúria de guerreiros?

Quem haveria de imaginar essa morada,
esse céu, esse jardim do paraíso?
Tu, que lês este poema, traduze-o.
Diz a todos o que aprendeste
sobre este lugar. [2]


***

[1] Os poemas de Rumi em homenagem a Shams em sua maioria foram concebidos em transe (dança dervixe) e transcritos quase instantaneamente por seus discípulos, ou ditados deliberadamente a outrem.

[2] Trechos retirados de Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz, de Jalal ud-Din Rumi. Publicado no Brasil pela Attar Editorial.

[3] Estrutura poética, tal qual, de forma aproximada, como um soneto para a poesia do Ocidente.

[4] Lembrando que isto foi dito em pleno século XIII, em meio ao islamismo.

[5] Na simbologia persa, estava associado ao Oceano Divino.

Crédito da imagem: Unveil The Sun

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27.5.12

A Europa e o ódio ao "outro"

A imagem acima nos mostra mais uma de tantas manifestações pacíficas e, as vezes, até mesmo bem humoradas, do povo europeu protestando contra os caminhos obscuros aos quais os seus governantes tem lhes direcionado... Mas, infelizmente, nem todos os protestos são pacíficos, e a xenofobia, o ódio "ao diferente", e o retorno a "religião da nação", nos trazem ainda alguns bons exemplos de até onde a ignorância humana pode chegar, em plena modernidade.

Dante Gallian é um historiador, mas em sua extraordinária palestra para o Café Filosófico da TV Cultura, cujo título é homônimo ao deste post, vemos muito mais filosofia, sensibilidade, e até um toque de mitologia, do que propriamente uma análise histórica "fria" dos eventos políticos e econômicos que desencadearam a crise do Euro.

Como no site do programa existem várias opções de visualização (palestra integral, editada, podcast), deixo aqui apenas o link para a página, para que decidam a melhor forma de aprender mais sobre o mundo atual:

» Ver a palestra de Dante Gallian no site do Café Filosófico

***

Crédito da foto: Johannes Simon/Getty Images

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25.5.12

Eros vendado

Dizem que foi sua prometida quem desesperou-se ao ver-se privada de sua beleza, mas os mitos não contaram esta outra história acerca de Eros:

O deus estava arrependido da brutalidade com que tratou Psiquê quando esta, pensando que o amado fosse um monstro, retirou suas vendas enquanto dormia, e pôde enfim admirar toda a sua beleza... Assim, desde então, Eros andava enlouquecido em meio ao Elísio, coberto de vergonha...

Como estava vendado, e se recusava a ver toda a beleza a sua volta, tornou-se amargo, temeroso do contato íntimo com qualquer um que lhe cruzasse o caminho: “vão retirar minha venda, vão ver minha beleza, mas somente Psiquê é digna de me ver!” – pensava consigo mesmo, angustiado.

Zeus, que tudo via e sabia, encarregou seu mensageiro, Hermes, de tentar convencer Eros a retornar a razão...

Então, cortando os céus feito um corcel alado, o mensageiro seguia o rastro de sangue que Eros deixara pelos caminhos do Elísio... Pobres animais, homens e semideuses, todos alvejados pelas flechas venenosas do Eros Vendado. As mesmas que antes traziam o amor, agora traziam a agonia.

Retirando a flecha negra do peito de um velho mercador de frutas que agonizava na estrada, Hermes lhe indagou acerca de seu encontro com Eros:

“Tudo o que fiz foi lhe oferecer uma de minhas maçãs, eu juro! Mais parecia um mendigo andarilho, pobre e esfomeado... Não sabia se tratar de um deus, por isso achei que fosse apreciar uma de minhas maçãs... Ofereci-lhe o alimento de coração, não pretendia ganhar nada em troca. Mas o deus estava louco, e zombou de minha caridade, alvejando-me em seguida... Nossa, como doem essas flechas negras...”

Restaurado, o mercador apontou a direção na qual o deus enlouquecido seguiu, e, tão rápido quanto um pensamento, Hermes estava lá, frente a frente com o Eros Vendado:

“Irmão, nosso pai deseja lhe ver...”

“E eu... Eu desejo ver meu pai... Mas como saberei se você é mesmo meu irmão? Como saberei se não é mais um truque da Beleza para que eu jamais veja minha amada novamente? Saia daqui!” – bradou o deus descontrolado, mas ainda muito preciso com seu arco que, sabe-se lá como, estava perfeitamente posicionado na direção de Hermes, ainda que Eros nada pudesse enxergar.

“Irmão, se você não me vê agora, como poderia ver sua amada, ainda que ela estivesse ao meu lado?” – respondeu Hermes ainda muito calmo, embora uma flecha negra e peçonhenta estivesse endereçada a sua fronte.

“Quem é você para falar dela? Maldito!” – atirou a flecha com tamanha precisão que, não fosse pelo elmo alado de seu irmão, o alvo teria sido atingido.

Hermes agachou-se e retirou a flecha do elmo que caíra ao solo. Então, com agilidade divina, o deus mensageiro rolou pelo chão e, antes que seu irmão pudesse atirar outra flecha, cravou-a bem no peito esquerdo, através do coração.

Ali morrera o Eros Vendado. Mas, como os deuses não permanecem mortos por muito tempo, Hermes tratou de levá-lo até a fonte d’água mais próxima e, o tendo lavado e desvendado, deixou-o ali na margem, bem morto, e esgueirou-se para detrás de um arbusto...

Quando finalmente ressuscitou, Eros parecia desnorteado, mas não louco... Na verdade, era como se tivesse acordado de um longo sono de loucura, e aparentemente recuperado sua sanidade novamente. A primeira coisa que fez foi lavar o rosto no espelho d’água. Foi quando Hermes se reapresentou, ele precisava ter certeza:

“Veja seu rosto no espelho, irmão, e diga-me: qual é o mais belo dos deuses?

Eros procedeu conforme instruído e, virando-se para Hermes, com a face feita ainda mais bela, com pingos d’água a escorrer em torno dos largos olhos, refletindo ao sol, disse-lhe:

“Ninguém... E todos... Todos os deuses são belos; e mais bela ainda é a humanidade, por tê-los imaginado...”

Então, Hermes sorriu: a missão estava cumprida, o Amor havia retornado a sanidade.


raph’12

***

Lá onde nasce o verdadeiro amor
morre o "eu", esse tenebroso déspota.
Tu o deixas expirar no negro da noite
e livre respiras à luz da manhã.

(Jalal ud-Din Rumi)

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Parte da série Esta outra história

Crédito da foto: BürgerJ (escultura Eros Bendato, de Igor Mitoraj)

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Antes que acabe a liberdade

Antes que acabe a liberdade (de verdade) na mídia brasileira, onde cada grupo parece ter o rabo preso num patrocinador ou corruptor diferente, o humorista mais genial da nova geração faz aqui o seu manisfesto:

Indiretas Já - paródia de Roda Viva, conforme era cantada por Chico Buarque e MPB-4 nos festivais musicais dos anos 60. Trecho do programa Comédia MTV, com Marcelo Adnet e companhia.

***

Vamos ser sinceros: estivesse Adnet em qualquer outra grande emissora, poderia ganhar muito mais, mas algo assim jamais teria ido ao ar...


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23.5.12

Os corvos de Wotan, parte 4

« continuando da parte 3

Bran estava caindo mais depressa do que nunca. As névoas cinzentas uivavam em seu redor enquanto mergulhava para a terra, embaixo. “O que você está me fazendo?” – [Bran] perguntou ao corvo, choroso. Estou lhe ensinando a voar.
“Não posso voar!”. Está voando agora mesmo. “Estou caindo!”. Todos os voos começam com uma queda, disse o corvo. Olhe para baixo. “Tenho medo...” OLHE PARA BAIXO!
Bran olhou para baixo e sentiu as entranhas se transformarem em água. O chão corria agora em sua direção. O mundo inteiro espalhava-se por baixo dele, uma tapeçaria de brancos, marrons e verdes. Via tudo com tanta clareza que, por um momento, se esqueceu de ter medo. Conseguia ver todo o reino e toda a gente que nele havia.
[...] Agora você sabe, sussurrou o corvo ao pousar em seu ombro. Agora você sabe por que deve viver.

(Trechos das páginas 120 e 121 de A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin. Publicado no Brasil pela Editora Leya).

Dentre as inúmeras e intrincadas histórias contadas por George R. R. Martin em seu épico As crônicas de gelo e fogo [1], a aventura de Bran, o menino aleijado que, não obstante, parece destinado a se tornar um grande xamã, está certamente entre as de maior importância para a trama geral. Ora, a imagem da própria família de Bran, os Stark de Winterfell, já nos remete a elementos nórdicos, mas será que Martin estudou apenas as descrições de experiências xamãnicas, ou ainda neste caso podemos falar em alguma influência do mito de Odin?

Ora, como eu já havia dito, Odin é também um deus de muitos nomes, e muitas facetas. Boa parte das mais de 200 denominações a Odin estão ligadas, pela raiz (no nórdico arcaico), às palavras vada e od, e, no antigo alto alemão, a Watan e Wuot, que significavam a princípio razão, memória ou sabedoria [2]. Há ainda a palavra Óðr (também do nórdico arcaico) que está mais diretamente associada à deusa Freyja (uma deusa dos vanir, que posteriormente foi associada à Odin como sua esposa), mas que também deu origem ao próprio nome “Odin”, e que poderia significar: mente, alma, espírito, além de poesia e inspiração artística.

O nome de Odin que mais nos interessa, no entanto, para esta associação com o corvo de três olhos dos livros de Martin, é o que deriva do nórdico arcaico Hrafnáss, ou do germânico latinizado Hrafnagud, ou seja: The Raven God, O Deus Corvo. Sabemos que Odin está intimamente ligado aos corvos, tanto que possuí dois corvos muitos especiais (dos quais falarei a seguir); além disso, sabemos que um olho em meio à testa, entre nossos dois outros olhos, significa o olho da mente, o olho da alma: o sentido pelo qual o xamã percebe o mundo espiritual... Ora, o primeiro ato de iniciação de Bran [3], nos livros de Martin, é exatamente ser bicado pelo corvo bem no meio dos olhos, e na altura da testa. Logo após o garoto acorda e acha que tudo “não passou de um sonho estranho”, mas no decorrer dos livros sabemos que não foi bem assim, não é mesmo?

Huginn e Muninn
Por causa de seu voo alto, o corvo foi, muitas vezes, visto como um mensageiro dos deuses. Inúmeras histórias, de diferentes partes do mundo, falam-nos de como um corvo orientou humanos em suas jornadas. Por exemplo: segundo uma tradição, foram corvos que orientaram os beócios rumo ao lugar em que deveriam fundar uma nova cidade – a Beócia. Teriam sido eles que, também, guiaram Alexandre o Grande, até o templo de Júpiter Amon, no oásis de Siwa, no Egito (e que, lá, predisseram sua morte). O imperador japonês Jimmu, teria marchado para a guerra, no século VII, guiado por um corvo dourado. Um corvo era o mensageiro do Rei Marres, do Egito... E as histórias assim se seguem.
Mas é exatamente na mitologia nórdica que o corvo está ainda mais diretamente associado à magia. Diz-se que o voo do corvo simboliza a viagem espiritual, através do Grande Mistério, onde ela se torna igualmente desejada e perigosa, pois pode tanto trazer a iluminação quanto a loucura, dependendo do cuidado com que é realizada. Obviamente isso tudo tem a ver, claramente, com o xamanismo.
Odin possui então esses dois corvos, Huginn e Muninn, cujos nomes significam, no nórdico arcaico: pensamento (Huginn) e memória (Muninn, que também pode significar mente). Diz-se que, todos os dias, enquanto Odin cuida de seus afazeres como governante de Asgard, seus corvos sobrevoam todo o mundo e depois retornam, na calada da noite, para se empoleirar em seu ombro e lhe cochichar tudo o que virem e ouviram. Dessa forma, o Granda Xamã conseguia manter-se bem informado de todos os eventos, e todos os segredos do mundo, enquanto governava seu grande reino mítico.
Mas, o que é mais extraordinário nesta história, e o que a liga ainda mais profundamente ao xamanismo antigo, é o medo que Odin tinha de que seus corvos não retornassem de seus voos diários... Há um trecho da Edda Poética que fala exatamente dessa tal característica tão humana do deus nórdico:

Huginn e Muninn voam a cada dia
Sobre os grandes espaços de Midgard [4]
Eu temo por Huginn, que ele não consiga voltar,
Mas fico ainda mais ansioso pelo retorno de Muninn [5]

Me parece que esse é o mesmo medo de todo o xamã iniciante, de todo aquele que mergulha no Grande Mistério da própria alma, e teme se perder de seu corvo guia, e nunca mais encontrar o caminho de volta. Trata-se de uma belíssima metáfora não somente para a própria arte da magia, como para todo o risco que ela envolve... Ainda assim, Odin é o Grande Xamã, não mais habita nosso mundo (Midgard), mas o mundo espiritual (Asgard), e mesmo assim, mesmo do alto de toda sua sabedoria, ele ainda temia perder seus corvos. Mesmo um deus teme perder sua memória, e seu pensamento – sem estes, ele reduz-se a nada, ou quase nada. Um deus louco não é muito mais do que um xamã louco...

***

Através desta nossa curta, porém espiritualmente profunda, viagem pelo mito de apenas um único deus, quantos ecos ocultos de nossa história não parecem ter vido a tona...

Não tenho dúvidas de que, assim como Odin, todo grande deus, todo grande mito, um dia foi homem: um grande e feroz guerreiro, um exímio caçador cuja lança jamais errava o alvo, um xamã ancião que intercedia no mundo espiritual para proteger e guiar sua tribo ou, quem sabe, apenas mais um que contemplou as estrelas, e tornou-se um artista, um poeta. Nossos mitos mais grandiosos provavelmente são as histórias das vidas de grandes homens e mulheres, mescladas com nosso temor e fascinação pelas forças da natureza, e com os aspectos psicológicos – nossas mais belas e profundas reflexões acerca do porque, afinal, estamos aqui neste mundo.

Eis porque nós mesmos também somos da raça dos deuses, e porque todos, deuses e homens, nada mais são do que emanações da Alma do Mundo, do Grande Mistério, do Oceano que somente alguns de nós se arriscaram até hoje em mergulhar, e de lá trouxeram as mais belas e aterrorizantes interpretações daquilo de oculto que sentiram – mas que, claro, seria impossível traduzir em palavras, em linguagem cognoscível.

Interessante como iniciamos este relato de Odin através das histórias em quadrinhos, onde o mito está mais diluído, mas é exatamente um escritor de quadrinhos que nos traz, atualmente, uma das definições mais completas da grande viagem dos corvos: “Magia é arte, a arte. E essa arte, seja a escrita, a música, a escultura ou qualquer outra forma, é literalmente magia. A arte é como a magia, a ciência de manipular símbolos para operar mudanças de consciência” – define Alan Moore no genial The Mindscape of Alan Moore.

Toda a arte nasceu da mitologia. A pintura e a gravura nasceram na arte rupestre, pré-histórica, xamãnica. A música também se desenvolveu conjuntamente com os rituais religiosos ancestrais. Mesmo o teatro surgiu na Grécia antiga, quando os cultos ao deus Dionísio acabaram evoluindo para peças teatrais onde os atores, tal qual aos xamãs, vivenciavam aos mitos. Já a poesia, é pura magia posta em palavras... É exatamente por isso que a magia é a arte, a primeira arte, pois foi através dela que nossos ancestrais puderam transportar suas ideias e pensamentos, seus símbolos, para este nosso mundo de carne e osso. E o que é a mitologia senão o arcabouço simbólico de toda a nossa arte?

Sob um ponto de vista, você poderá dizer: “poxa, mas a magia é apenas isso?”; ou poderá dizer, sob outro ponto de vista: “puxa, mas então a magia é tudo isso!”. O seu ponto de vista dependerá tão somente da altura na qual seus corvos conseguem voar...

***

Há muito Heimdall não ouvia aquele pio tão familiar... De fato, há muitas eras nada se mexia – animal, homem ou deus – na ponte Bifröst; de modo que seu fogo havia quase se apagado, e suas cores se mesclado num acinzentado triste. “Eram os corvos”, o antigo guardião jamais se confundiria com tais sons, ainda que fosse difícil os escutar com o ouvido decepado, mergulhado na mesma fonte em que seu Senhor havia deixado um de seus olhos.

Soerguendo-se lentamente – algo que não fazia há gerações –, Heimdall tentou soprar seu berrante, mas faltou-lhe ar nos pulmões, e as aves negras adentraram a clausura dos deuses sem serem sequer anunciadas...

Não era necessário. Asgard estava morta, e todos os seus deuses e semideuses dormiam, algo que ansiavam há muito fazer. Há muitas eras nenhum pensamento chegara até ali, nenhuma invocação, nenhum pedido de boa colheita, nem mesmo um agradecimento... O Deus Corvo e sua linhagem estavam esquecidos, como estátuas antigas em meio à paisagem, das quais ninguém mais lembrava para que serviam, ou o que representavam...

Ainda assim, enraizado em seu trono, coberto pelo denso metal de sua ainda reluzente armadura, Odin dormia por detrás de sua extensa barba, branca como a neve do inverno. Quando o primeiro corvo pousou em seu ombro, foi o medo que o fez abrir lentamente o único olho que lhe restava: “Huginn está aqui, ele voltou, finalmente! Mas, onde está o outro, onde está Muninn?”

Seu outro corvo pousou imediatamente no outro ombro, e juntos eles lhe relataram tudo o que viram e ouviram nos últimos séculos, e sobre como o povo de Midgard, apesar de tudo o que foi dito a seu respeito, ainda o respeitava. E como, ainda hoje, alguns deles ainda tocavam as pedras antigas, e ainda invocavam a magia dos corvos... Foi então que, após tantas e tantas eras, o Grande Xamã sorriu uma vez mais, despiu-se de sua couraça metálica e, apanhando a mesma antiga capa com que perambulava pelo mundo ainda antes das civilizações, pôs-se a caminhar uma vez mais. Em sua mente, ecoavam os antigos sons que as pedras faziam...


Sigur Rós – Odin’s Raven Magic (ao vivo em Reykjavík/Islândia, 2002)

***

[1] Apesar de ainda incompleta, os livros já publicados da série (5 de prováveis 7, ao todo) já inspiraram uma legião de fãs, e uma excelente série de TV produzida pela HBO, canal a cabo americano. A melhor (e ao mesmo tempo pior) coisa que podemos falar de Martin é que “ele é o novo Tolkien”: melhor, pois realmente se trata de um dos grandes escritores de literatura fantástica das últimas décadas; pior, pois o seu estilo literário quase nada tem a ver com o de Tolkien, sendo bem mais ancorado na história “real” do que na mitologia em si.

[2] Mais tarde tornaram-se equivalentes a tempestuoso ou violento, sentido que os cristãos faziam empenho de acentuar, procurando depreciar a figura do deus nórdico.

[3] Em gaélico antigo a palavra “bran” significa exatamente “corvo”. Há também um gigante gaulês antigo chamado Bran o Abençoado, que em sua mitologia foi o rei de toda a Bretanha, e que também era associado à imagem do corvo. Martin provavelmente também se interessou pela mitologia celta.

[4] Na mitologia nórdica Midgard é a Terra (este mundo), portanto Odin permanecia em Asgard, mas seus corvos sobrevoavam o nosso mundo.

[5] Traduzido da interpretação (em inglês) de Benjamin Thorpe, conforme aparece na Wikipedia.

Este post foi publicado numa quarta-feira...

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Crédito das imagens: [topo] Daaria (Bran e o corvo de três olhos); [ao longo] Google Image Search (Odin e seus corvos)

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22.5.12

Os corvos de Wotan, parte 3

« continuando da parte 2

A fonte da sabedoria
Ainda abaixo de uma das gigantescas raízes de Yggdrasil, a árvore cósmica a sustentar todos os reinos míticos da mitologia nórdica, se encontra uma nascente d’água muito especial: Mímisbrunnr. É neste pequeno lago que vivia o Mímir, um reconhecido sábio (seu nome significa algo como “o sábio”, ou ainda “aquele que se lembra”). Odin ficou sabendo da existência desta fonte, que se acreditava dar “a sabedoria de todas as eras” aqueles que a bebiam regularmente (daí a sabedoria do próprio Mímir, seu guardião). Ora, como Odin era um deus que buscava a sabedoria, ele a visitava regularmente para beber um pouco de sua água, assim também ficando amigo de seu protetor.
O que ficou mais conhecido desta história, entretanto, foi o fato de Odin ter arrancado um de seus olhos (não se sabe qual ao certo) e o mergulhado no lago, onde jaz até hoje, oculto no lodo, onde talvez só ele e o Mímir saibam localizar. Diz-se que Odin realizou tal sacrifício em troca da sabedoria do Mímir, mas obviamente algo aqui não faz sentido: se Odin já conhecia a localização do poço, se já era amigo do Mímir, qual seria a necessidade de sacrificar um olho em troca de sabedoria (da qual ele já dispunha gratuitamente)?
Este me parece mais um mito cuja interpretação exige que usemos os olhos da alma, e não do corpo. Para mim, está muito clara a metáfora de “se ter um olho no mundo espiritual, e um olho no mundo terreno”. Ora, por mais que Odin pudesse galopar os céus em seu corcel de oito patas, ele aparentemente não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ou pelo menos não podia estar no plano terreno e no plano espiritual ao mesmo tempo. Esta bela história nos aponta, portanto, para um fato bastante conhecido do caminho espiritual, e até mesmo da própria prática da magia ou da mediunidade: abre-se um olho lá, fecha-se um olho cá. Mas, querer fazer ambas as coisas ao mesmo tempo pode nos levar a loucura, a não ser, talvez, que sejamos também da raça dos deuses.

A cabeça perdida e encontrada
Infelizmente o destino do Mímir não foi dos mais agradáveis... Na apocalíptica guerra entre os vanir e os æsir, o Mímir teve sua cabeça cortada por um guerreiro vanir. Ora, os vanir eram um povo relativamente pacífico e místico, que cultuava deuses da fertilidade e da sabedoria, e também se dizia que muitos eram capazes de ver o futuro. Eles já habitavam o norte europeu, mas foram invadidos pelos æsir (ou “meio-deuses”), um conglomerado de tribos guerreiras e expansionistas, que vinham da Ásia e do sul europeu em busca de novos territórios. Como o Mímir, juntamente com Odin, pertencia aos æsir, foram deles a iniciativa do ataque.
Os vanir eventualmente foram conquistados e tornaram-se um subgrupo dos æsir, até que as eras se passassem e todos fossem confundidos com um só povo: o povo nórdico...
Mas, voltando a grande batalha: Odin, não se dando por rogado, encontrou a cabeça perdida do Mímir após o final da chacina e, com sua magia, manteve seu amigo vivo como uma peculiar (e, provavelmente, assustadora) cabeça falante que ele carrega consigo para onde quer que vá – pois o Mímir ainda é um grande e sábio conselheiro.
Esta épica batalha, que poderia ser lamentada como um fato trágico, na realidade é festejada como o alvorecer da civilização – de qualquer civilização, pois todas começaram assim, e todas tem mitos muito próximos [1] –, quando tribos sedentárias e pacíficas, que já dominavam a agricultura, são invadidas e quase dizimadas por tribos nômades guerreiras. Mas, no fim, tudo se ajusta: a cultura das tribos nativas, geralmente mais profunda e espiritual (por se tratar de gente “que tinha tempo de viver, e não apenas caçar e coletar”), é assimilada aos poucos pela cultura invasora, e com o passar dos séculos é como se todas fossem uma só cultura – e, de fato, já o são.
O próprio fato de Odin ainda hoje ser visto como um deus de sabedoria e magia, e não apenas um grande guerreiro, demonstra que talvez, no fim, a cultura dos vanir tenha se sobressaído à cultura dos æsir, e isso talvez indique que ainda podemos ter a esperança de uma volta a este antigo mundo pacífico: onde a fertilidade é mais exaltada do que a ferocidade.
Mas, e quanto à cabeça decepada e falante do Mímir, o que diabos isso significa? Olha, não vou dizer que sei o que isso significa, mas este mito me remete pelo menos a duas considerações: a primeira, é que os nórdicos já sabiam valorizar a importância da cabeça em relação ao corpo, o que a neurociência apenas confirmou; a segunda, é que eles tinham algum senso de humor.

O deus enforcado
Como já disse no início, Odin também é reverenciado por ter trazido ao conhecimento dos homens as runas, que nada mais eram do que o primeiro alfabeto do povo nórdico, o que possibilitou a origem da escrita entre eles. O que eu não mencionei é o quão estranha é, a primeira vista, a história que nos conta como Odin obteve tal conhecimento...
Diz-se que ele, desejando adentrar reinos ocultos do mundo espiritual, enforcou-se na própria árvore cósmica, Yggdrasil, por nove dias e nove noites (nove também são os reinos míticos da mitologia nórdica em geral), enquanto era estocado por sua própria lança (não está claro quem o “auxiliava” neste ritual, talvez fosse ainda o Mímir quando tinha o corpo inteiro)... Ao final de todo esse sacrifício, Odin acordou (se é que ele morreu no processo, entende-se que após os nove dias ele ressuscitou [2]) e trouxe consigo a memória do conhecimento da escrita rúnica.
Ora, sabe-se que todos os deuses inventores da escrita foram grandes, ou ainda são: pois foi exatamente a escrita que possibilitou que o conhecimento sobre eles fosse preservado de forma mais exata (o que não necessariamente é algo sempre bom). No Egito antigo sabe-se que tal tarefa coube ao deus Thoth. Posteriormente, na Grécia, existiu também Hermes, que partilhava de tantas características em conjunto com Thoth, que muitas vezes faziam referência a ambos os deuses sob o título de Toth-Hermes. Entre os romanos, Hermes foi conhecido como o deus Mercúrio e, de fato, muitos historiadores acreditam que os romanos também confundiam Mercúrio com o próprio Odin, quando se referiam aos povos nórdicos – assim, o ciclo se fecha...
Mas, o que me interessa aqui é que todos os deuses inventores da escrita também eram reconhecidos como grandes intermediários entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses, ou seja: eram médiuns, ou xamãs [3].
E é exatamente daí que parte a compreensão do que diabos Odin foi tentar fazer ao se enforcar numa árvore cósmica: ora, é claro que se trata de ainda mais uma metáfora. A árvore Yggdrasil sustenta todo o Cosmos e, dessa forma, o ato de “enforcar-se” nela nada mais é do que o ato de “perder a consciência deste mundo, e viajar com ela alhures”... Além desta referência mais clara ao xamanismo (ou a viagem astral) há ainda a questão das “estocadas de lança”: uma imagem muito comum na arte das cavernas, a arte rupestre, de nossa pré-história longínqua, e que também está intimamente relacionada às práticas xamãnicas.
O ato simbólico de se cortar, espetar, estocar com lanças, ou até mesmo destroçar o próprio corpo, significa, para o xamã, o abandono total do apego ao corpo, para que ele possa se elevar mais facilmente, e mais profundamente, aos reinos etéreos de sua própria alma, ou da Alma do Mundo, ou de Yggdrasil. Estes sacrifícios foram necessários para que os xamãs, os grandes heróis míticos de outrora, pudessem nos trazer conhecimentos ocultos, que podiam variar desde “onde caçar amanhã”, a “quais plantas e ervas coletar para fabricar este ou aquele remédio”, a até mesmo a própria inspiração divina para algo totalmente novo, como a escrita rúnica.

» Na última parte: finalmente, os corvos...

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[1] No Mahabharata hindu temos histórias de batalhas muito parecidas, de onde surgiram grandes reinos e, eventualmente, a própria civilização. Na Europa não será diferente: mesmo a origem de Roma teve seu episódio de brutalidade para com tribos pacíficas na região próxima. No Brasil, poderíamos nos referir aos indígenas como os vanir, e aos colonizadores europeus como os æsir (como já disse, a história é escrita pelos vencedores).

[2] Avatares que morrem por “x dias” e ressuscitam com novos conhecimentos místicos existem aos montes na mitologia em geral.

[3] Você pode achar estranho o termo “xamã” aparecer toda hora neste relato, e tem toda razão: o termo surgiu do estudo antropológico dos primeiros místicos tribais da Sibéria, mas acabou por ganhar o mundo num significado bem mais amplo, referindo-se a todo e qualquer chefe espiritual tribal de toda e qualquer cultura selvagem antiga. Dessa forma, obviamente os índios do Brasil não chamam a seus xamãs como xamãs, mas sim como pajés, e assim vai... É nesse sentido que os termos “xamã” e “xamanismo” (a prática espiritual do xamã) são utilizados ao longo desta série.

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Crédito das imagens: [topo] viking-mythology.com (A fonte do Mímir); [ao longo] Anônimo

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21.5.12

Os corvos de Wotan, parte 2

« continuando da parte 1

Um dos problemas em tentar se interpretar um mito tão antigo como Odin nos dias atuais é a questão de, obviamente, os dias atuais pouco ou quase nada terem a ver com os dias em que os nórdicos cantavam poemas sobre seu Deus no inverno europeu. Isso também nos leva a uma outra questão, mais profunda, que é a antropomorfização do Deus: ora, fica óbvio que o Odin-homem, filho de Bor, não pode ser o Deus do qual tudo emanou, visto que ele mesmo é filho de ainda outro deus. Mas, pelo que sabemos, Bor é citado diretamente apenas uma única vez em toda a Edda Poética, e não há registro algum de culto a este deus (em qualquer época), de modo que mesmo o fato de Odin ter um pai pode fazer parte dessa transformação do Deus em um homem divino, um deus antropomorfizado em um avatar [1].

Pelo menos neste aspecto continuamos no mesmo barco dos ancestrais europeus: temos uma dificuldade muito parecida em nos referir a Deus sem “esbarrar” em antropomorfizações do tipo. Mas isto, longe de ser um problema para o entendimento da mitologia, é na verdade um ponto de encontro entre a modernidade e a antiguidade. É claro que boa parte da simbologia que foi atribuída ao mito de Odin ao longo dos séculos teve muito a ver com o estilo de vida e as ideias, os anseios e os medos, do povo nórdico... É exatamente quando retiram Deus de seu aspecto incognoscível (ao menos para a grande maioria de nós) e os “trazem para baixo”, para nossa realidade humana, é que encontram inspiração para relatar sua realidade em inúmeras histórias fantásticas, baladas poéticas, salpicadas por panteões de deuses e um imenso conjunto de seres mitológicos, simbólicos. E, exatamente por tais histórias terem essas camadas superficiais de simples entendimento, tornou-se possível que chegassem, boca através de boca, mente através de mente, até os nossos dias atuais.

Isso não significa que não tenham muitos elementos ocultos, eternos, escondidos nas camadas mais profundas de sua narrativa. A questão é: e quem terá a lamparina para iluminar tais locais ocultos e descobrir toda a profundidade do mito? Quem, a não ser você? Quem, a não ser todo aquele que busca compreender a mitologia humana, a nossa história mais profunda, com a mente realmente aberta e arejada?

Estas são algumas das histórias mais profundas acerca de Odin... Acendam as lamparinas:

O deus errante
Talvez a mais antiga forma de representação de Odin seja a do deus errante, a vagar pelo mundo dos homens sem um destino exato, carregando um cajado (ou sua lança usual, mas utilizada como cajado), e vestindo um disfarce de nômade (sem elmos, armaduras, nem nada do tipo). Diz-se também que esta versão do deus tinha características xamânicas, que foram preservadas nas versões posteriores, mas que nesta fase eram mais “aguçadas”... Ora, se formos analisar toda a mitologia, há inúmeros casos de deuses errantes, particularmente entre os africanos, os indígenas das Américas e os xintoístas – o que essa ideia nos conecta, historicamente, é com o período pré-histórico em que fomos caçadores-coletores, e não sabíamos nada de agricultura.
Um deus errante não pode, no entanto, ser o patrono de um panteão de deuses, muito menos o governador de um reino como Asgard. Na época dos caçadores-coletores, não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia divina, assim como não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia entre as tribos humanas – simplesmente existiam inúmeras tribos, umas amigáveis e outras não, e inúmeros deuses ou espíritos errantes da natureza, uns amigáveis e outros não. Antes da civilização, a espiritualidade era horizontal, não vertical.
Com o surgimento da agricultura, das primeiras civilizações, e da ideia de hierarquia, o mito do deus errante aos poucos foi se transformando no mito do Deus-Pai, o Grande Xamã: não apenas de uma tribo, mas de centenas ou milhares de tribos. Odin era então o deus de todos os povos nórdicos, que agora viviam em vilas e cidades, embora ainda caçassem e guerreassem uns com os outros e, sobretudo, com os povos do sul da Europa.
Talvez por isso, apesar de Senhor de Asgard, Odin nunca tenha deixado de ser também o deus caçador, o deus errante... Você pode achar que o Odin errante jamais exerceu qualquer impacto sobre você, mas isso pode não ser verdade, principalmente se você, como eu, já leu e se maravilhou com os livros do britânico J. R. R. Tolkien – O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Ora, ocorre que Tolkien era um grande fã da Edda Poética e, como tal, introduziu em sua Terra Média inúmeros mitos dela. Um deles era exatamente o mago Gandalf, que é totalmente inspirado pelo aspecto errante de Odin, até mesmo na aparência.

Sleipnir
Diz-se que Odin era muitas vezes visto cavalgando pelos ares em seu cavalo de oito patas (mas nenhuma asa), chamado Sleipnir. Esta é mais uma parte do mito que está claramente associada ao xamanismo. Um cavalo de oito patas já pode ser associado aos transes xamânicos, quando supõe-se que, em estados alterados de consciência, provocados por rituais específicos ou mesmo pela ingestão de plantas e/ou cogumelos alucinógenos, os xamãs antigos (assim como os modernos) tinham visões de animais se metamorfoseando em outros animais, ou adquirindo membros extras, dentre outras alucinações do tipo [2]...
Porém, além disso, Sleipnir era um cavalo voador, o que se trata de uma clara menção as “viagens” em transes xamânicos, assim como uma conexão do mundo terreno com o mundo espiritual, celeste. Esta conexão é reforçada pelo fato de Sleipnir ser também capaz de levar seu cavaleiro até o submundo (o mundos dos mortos), e o trazer de volta são e salvo.
Histórias bem mais recentes, medievais, contam que nos dias próximos ao solstício de inverno, as crianças nórdicas deixavam suas botas com cenouras, feno e açúcar, próximas as chaminés das casas, para que Sleipnir viesse e as comesse. Odin costumava recompensar tais crianças com pequenos brinquedos e doces, que no outro dia eram encontrados dentro das botas. Ora, nem preciso dizer o que isso nos lembra nos dias atuais, não é mesmo? Odin é realmente conhecido por diversos nomes...

Geri e Freki
Odin também era acompanhado por dois lobos ferozes, Geri e Freki. Ambos os nomes significam algo como “guloso”, ou até “vorazmente guloso”. Os lobos de Odin eram conhecidos por comerem bastante, realmente: isto, pois Odin sobrevivia apenas de vinho, e mesmo nas festas em seu salão real, deixava toda a carne ou qualquer outro tipo de alimento sólido para que sues lobos devorassem.
Ironicamente, encontramos uma clara referência ao ascetismo espiritual dentre um mito nórdico [3]. Odin era o Grande Xamã e, como tal, a ele apenas o vinho sagrado era necessário – tudo o que precisava para estabelecer seu poder sobrenatural, que provavelmente tinha muito a ver com as visões experimentadas em transes xamânicos. Essa ideia aparentemente estranha é reforçada pelo fato de outras tantas histórias afirmarem que o vinho de Odin é um poderoso catalisador da criatividade poética, e os poucos bardos que um dia tiveram a grande sorte de provar de seu sabor, compunham a seguir as mais belas e profundas baladas de que se tem notícia. Quem sabe, talvez mesmo os Eddas sejam fruto desta divina bebedeira!

» Na próxima parte: Odin, suas visões do mundo espiritual, e uma estranha cabeça falante...

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[1] O termo avatar vem do hinduísmo e significa algo como a manifestação de um ser imortal em um corpo, um humano mortal como qualquer outro. Este termo obviamente não era utilizado pelos nórdicos, mas eu o estou citando como forma de me fazer compreender melhor.

[2] Para uma análise mais detalhada do xamanismo em geral, recomendo consultarem a série de artigos Xamãs ancestrais.

[3] Uma outra leitura interessante, paralela a esta, seria identificarmos os lobos Geri e Freki como os aspectos bestiais e animalescos da alma. A aventura de Odin também consistiria, portanto, de um grande autocontrole, para que seus lobos continuassem devidamente “adestrados” e controlados, e comessem “somente quando Odin assim o permitisse”.

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Crédito das imagens: [topo] Georg von Rosen (Odin the Wanderer, 1896); [ao longo] John Howe (Gandalf, 1999); John Bauer (Odin and Sleipnir, 1911)

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20.5.12

Os corvos de Wotan, parte 1

A chamada tradição oral é a preservação de histórias, lendas, usos e costumes através da fala. Origina-se do primórdio da história humana, quando ainda não havia a escrita e os materiais que pudessem manter e circular os registros históricos. Na atualidade própria das classes iletradas, a tradição oral tem sido, contudo, muito valorizada pelos eruditos que se dedicam ao seu estudo e compilação (as baladas da Edda Poética, por exemplo), ao considerarem que é na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Supõe-se, por exemplo, que a Ilíada e a Odisseia de Homero foram inicialmente, assim como as Eddas, longos poemas recitados de memória.

Joseph Campbell gostava de dizer que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Esse aparente paradoxo pode ser reconciliado se entendermos a tradição oral, mãe da mitologia, como a melhor forma com a qual o espírito humano pôde passar adiante suas experiências no contato com a essência das coisas, com o que há de eterno no mundo. Dessa forma, todas as variantes de um mesmo mito são, no fundo, uma mesma história. E toda mitologia é, no fundo, uma mesma mitologia, uma mitologia do espírito humano.

Mas hoje não vivemos mais em tribos e aldeias, e nem todos necessitam decorar tais histórias antigas. Além disso, não são os xamãs nem os anciãos quem nos passam os mitos, mas alguns poucos textos sagrados de outrora, que até hoje inspiram inúmeras variações na mente dos contadores de histórias modernos – a quem conhecemos, principalmente, como artistas. Existem mitos sendo recontados em todos os cantos: nos livros de vampiros adolescentes, nos filmes de Hollywood, nas séries de TV de fantasia, e até mesmo num gibi.

O deus que usarei como exemplo de referência neste artigo é hoje um conhecido personagem de histórias em quadrinhos da Marvel. Se você já leu algum gibi, ou viu algum filme recente, de seu filho, certamente o conhece: Odin (ou Wotan, ou Wôdan, variantes hoje menos conhecidas, mas que vieram do original germânico), é o Senhor de Asgard e pai de Thor, o heroico deus do trovão. Você pode achar que não há nada de muito profundo a se falar sobre um velho deus-herói-caçador aposentado que hoje se limita a governar uma cidade mítica, e talvez tivesse razão se considerarmos apenas a forma extremamente diluída deste mito que nos chegou aos dias atuais como um mero personagem de quadrinhos... Mas, não que eu esteja condenando Stan Lee e Jack Kirby, pelo contrário: apesar de terem “diluído” o mito, eles fizeram por ele bem mais do que o cristianismo, que por muitos séculos demonizou o grande deus dos povos nórdicos europeus, a fim de substituí-lo por sua versão bíblica.

Mas, o que exatamente eu quero dizer pelo mito de Odin, será que me refiro a uma entidade sobrenatural real? Bem, com todo o respeito à Freternidade de Odin [1], não é exatamente isso que quero dizer... É óbvio que não existe, na natureza terrestre pelo menos, um homem caolho a cavalgar os céus montado num cavalo de oito patas; mas, por outro lado, a iconografia de Odin é toda ela um imenso conjunto de símbolos, símbolos estes que existem e sempre existirão, ao menos enquanto existirem mentes com vontade de pensar sobre eles.

Os símbolos nada mais são do que imensas quantidades de informação reduzidas a uma única imagem ou história fantástica ou ícone que funcionam como uma chave mental para o acesso dessas informações e sensações, desde que a pessoa saiba, em seu pensamento, como usar esta chave de uma forma consciente. Você pode perfeitamente substituir a imagem (o símbolo) de Odin por uma série de palavras (formadas por conjuntos de símbolos – as letras do alfabeto) a formar uma extensa lista: sabedoria, fúria, excitação, guerra, caçada, mente, magia, poesia, escrita rúnica, etc. É claro que, dependendo da interpretação de cada pessoa, e de cada tradição folclórica, essa lista pode variar imensamente, mas não absolutamente. Odin é um conjunto de símbolos, ele serve para que acessemos tais ideias em nosso pensamento, sentimento e intuição, de forma simplificada e cada vez mais potente (o hábito faz o monge).

O grande problema do “uso dos mitos” é quando os entendemos como seres literais (e não metáforas), dispostos a barganhar conosco em troca de “favores espirituais”, “boa sorte”, “boa saúde”, etc. Isso é um problema porque, exatamente, a grande vantagem dos mitos é poder ativar a nossa vontade para que nós mesmos busquemos tais objetivos, que nós mesmos nos tornemos heróis a vivenciar a grande aventura da vida, que nós mesmos nos tornemos, enfim, deuses (“sois deuses, farão tudo o que faço e ainda muito mais” – disse o grande rabi da Galileia [2]).

Mas, retornando a Odin: é verdade que o que sabemos hoje sobre o seu mito é extensivamente baseado na Edda Poética, um grandioso conjunto de poemas vindos diretamente dos mitos dos povos nórdicos antigos da Europa, e que foi preservado no Codex Regius (“Livro Real”), um códice islandês que provavelmente foi escrito em cerca de 1270 d.C., mas que só se tornou “conhecido na modernidade” quando um bispo o encontrou na Islândia e o enviou como presente ao então rei da Dinamarca, em 1662. A Edda então permaneceu na Biblioteca Real de Copenhagen até 1971, quando foi escoltada por militares por terra e mar (um acidente aéreo poderia a danificar permanentemente), de volta a capital da Islândia, Reykjavík. Lá ela permanece até hoje, como uma legítima relíquia que guardou praticamente sozinha aos séculos da cultura de um povo, e impediu que seus mitos de diluíssem até não mais existirem.

O que os versos da Edda nos trazem, entretanto, são baladas e cânticos bardos de épocas ainda muito mais remotas... Diz-se que Odin já era conhecido desde os primórdios da língua protogermânica, que durou de 500 a.C. há 500 d.C., e que formou a base de diversos idiomas atuais, como o inglês, o escocês, o alemão, o dinamarquês, o norueguês e o islandês, dentre outras. De fato, Odin é tido como o grande responsável por trazer aos homens o conhecimento das runas, a base da escrita germânica antiga, do mundo espiritual (falaremos mais sobre isso na sequência). Ora, como as runas mais antigas encontradas datam dos séculos I e II d.C., podemos dizer que o mito de Odin era tão antigo quanto elas... Mas, talvez seja ainda muito mais antigo do que isso. Porém, como teremos certeza?

Certeza nós jamais teremos, pois a história não é somente uma mera reconstrução moderna dos tempos de outrora: mas uma reconstrução criada primordialmente pelos povos e países vencedores das guerras e dos embates dentre crenças religiosas... O Odin que conhecemos hoje é um Odin sobrevivente aos séculos de domínio romano e cristão, e é mesmo quase um milagre que ele tenha sobrevivido. Apesar das extensivas campanhas de demonização feitas pelos ditos cristãos, o mito mostrou-se persistente: Odin ainda cavalga pelos céus, pelas películas de cinema e pelas histórias em quadrinhos.

Dito isso, é preciso deixar claro que a própria natureza do mito é a de se transformar continuamente, preservando-se apenas sua essência, aquilo que está fora do tempo, e sobrevive exatamente por nos tocar a alma, por ser eterno... Portanto, e interpretação que mais conta é a atual; e, além disso: é a nossa interpretação. Porque os mitos que nos são despejados como dogmas pré-estabelecidos por pretensas figuras de autoridade não são muito mais do que propaganda enganosa. O que nos importa, o que sempre importou, é identificar a essência, a verdade guardada em inúmeras metáforas, percebida sabe-se lá por qual ancestral selvagem em meio ao inverno europeu, e que, espantosamente, ainda está aqui, ainda nos toca a alma, ainda é capaz de nos elevar a estados de consciência que nem sabíamos que existiam.

O que falarei a seguir, portanto, é da minha interpretação do mito de Odin. Baseada num estudo das inúmeras histórias que ainda se contam dele, é claro; mas, não obstante, minha interpretação. Sinta-se a vontade para questioná-la, interpretá-la, vivenciá-la, pois é isso o que os mitos nos pedem...

» Na próxima parte: Odin, seus lobos e seus disfarces...

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[1] Sociedade secreta neopagã que até os dias atuais celebra os ritos antigos relacionados à Odin e a outros elementos da mitologia nórdica. Segundo eles, “Odin não é um arquétipo psicológico ou uma metáfora para referência as forças naturais, mas uma entidade real”. Eles também são “politeístas a fundo”, e ao contrário de outros politeístas que na realidade compreendem aos deuses como emanações de um único Deus Primordial (o que no caso faria de Odin o Deus, e Thor, por exemplo, um de seus Arcanjos ou Profetas, se formos fazer uma [má] comparação com o catolicismo), para eles não há nenhuma lógica em crer que uma única entidade emana toda a realidade conhecida de si própria. Bem, provavelmente eles nunca leram Espinosa... Por outro lado, existe sempre a possibilidade de terem inventado essa história com o propósito de afastar curiosos indesejados.

[2] João 10:34; João 14:12 (NT).

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Crédito da imagem: Action figure por Randy Bowen (para a Marvel Comics)

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17.5.12

Comentário: sem Deus, tudo é permitido?

Comentário das respostas da pergunta “sem Deus, tudo é permitido?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.

[Raph] Estamos mais acostumados a presenciar casos de preconceito dos religiosos para com os ateus. Normalmente as explicações incluem “ora, mas ele não tem Deus no coração” e coisas do tipo; acho que todos aqui já sabem do que estou falando...

Pois bem, comigo ocorreu algo como o oposto disso, de certa forma: durante os meses em que esta série se estendeu, eu tive a felicidade de ler o mais novo livro do filósofo suíço Alain de Botton, Religião para ateus [1]. Ora, eu sempre adorei os livros de Botton, e nunca me preocupei em saber se ele era ou não ateu... Da mesma forma, nunca me preocupei em saber se o funcionário de uma livraria que frequento era ou não ateu. Ele sempre me atendeu bem, mas era impossível não notar a forma meio “distante” com a qual ele lidava comigo, particularmente quanto estava folheando livros das estantes de espiritismo e ocultismo. Eu pensava que ele era evangélico ou coisa do tipo, sabe como é: nós espiritualistas estamos mais do que acostumados com esse tipo de preconceito. Normal.

Pois é, tal funcionário por acaso era agnóstico, e seu “distanciamento” não tinha nada a ver com o preconceito por eu ser espiritualista, mas sim por uma pura pressuposição de que era eu quem devia ter preconceito para com ele... Engraçado como são as relações humanas: bastaram cinco minutos de conversa sobre o livro de Botton, e ambos percebemos que nenhum dos dois tinha a menor necessidade de “temer” o preconceito do outro. Na verdade, nenhum dos dois tinha preconceito algum, pelo contrário: tinham certo cuidado, certo “distanciamento”, exatamente por considerar a possibilidade do outro ser preconceituoso. Cinco minutos de conversa: quem dera fosse tão simples resolver o preconceito do mundo assim...

O problema é que a maior parte das pessoas infelizmente não costuma frequentar muito a livraria, elas preferem que alguma autoridade leia os livros para elas, e resuma o que achou. Mas livros são apenas conjuntos de palavras, o que importa é o que conseguem fazer com aqueles que os leem. Livros não mudam o mundo, as pessoas que os leem é que mudam o mundo.

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Você pode achar que um espiritualista ou ocultista não tem muito sobre o que conversar com um cientista ou cético. Pior ainda seria ambos dialogarem sobre Deus: “perda de tempo total”... Se este é o seu pensamento sobre a questão, permita-me trazer-lhe aqui um diálogo meu com um amigo que foi professor universitário de física e matemática (hoje está aposentado, mas é vice-diretor de um colégio de Viçosa/MG). Este amigo se autointitula “livre pensador, cético, racionalista, humanista, estóico, epicurista, anarquista e ateísta” – você acha que eu não teria nada a falar com ele sobre Deus?

O diálogo começou quando eu comentei sobe um post seu numa rede social. No post ele mostrava parte da resposta para uma pergunta de uma provável jovem estudante: “Acho que estou apaixonada de novo, o quão estou fodida?”. Para essa pergunta, tão corriqueira da juventude (com fodida e tudo), meu amigo me trouxe uma belíssima resposta do qual destaco apenas um trecho: “Você ganhou o prêmio de estar experimentando a sensação mais maravilhosa que a vida pode propiciar. Você já está no céu sem ter morrido. O resto não importa”.

Foi a partir daí que comecei a dialogar com meu amigo, que vou chamar aqui de Wolf:

Raph – Se Deus for o nosso amor, não será preciso esperar a morte para chegar ao céu, nem temer inferno algum.

Wolf – O amor a Deus é um amor platônico. O amor completo, além dos aspectos agape e philia, também envolve o eros, que, em geral, não se devota a Deus. Além disso, o amor a Deus não é sensivelmente correspondido. Você pode ter a intelecção de que Deus o ama, mas você não tem essa sensação, como você pode ter do amor de outra pessoa. Assim, o céu que o amor de Deus pode propiciar é um céu intelectual. O céu que uma paixão amorosa humana propicia, além de intelectual, é também sensorial.

Raph – Pois é eu quis dizer literalmente isso: se Deus for o nosso amor, se tudo o que associamos ao amor, ao amor puro, mesmo que sexual, seja Deus. É mais um jogo de palavras, cada um entende a palavra "Deus" do seu modo, para o bem ou para o mal (poderia dizer, talvez, "se o Sagrado for nosso amor")... Mas eu toquei nisso porque achei bonito o que disse: "Você já está no céu sem ter morrido".

Wolf – Sim, se considerarmos que Deus significa, simplesmente, "amor", então quem está apaixonado está com Deus no coração. Nesse caso, Deus não é um ser. Essa é uma concepção que me agrada. Quando alguém diz "fica com Deus" ou "vai com Deus", está dizendo "fica com amor" ou "vai com amor". Realmente, é disso que a humanidade precisa. Para tal vale ler o "Tao Te Ching" de Lao Tsé.

Raph – Exato, quem sabe o Tao não seja o Amor: Deus em movimento... Mas vamos aprofundar um pouco mais: quem sabe se o motivo de tantos terem medo de se apaixonar não tenha algo a ver com esse entendimento de Deus como agente de barganha: "eu Te amo, Pai, e em troca ganho isto ou aquilo" (por ex: "a salvação").

Nas relações amorosas, às vezes as pessoas parecem pensar assim, só que quando percebem que nem sempre recebem "amor de volta", ficam com medo de amar. Mas, se o amor for sua própria recompensa, não deveriam se preocupar com barganhas, mas simplesmente com o exercício do amor.

Lao Tsé não espera nada em troca, o simples fato de refletir sobre o Tao o faz feliz. É como contemplar as estrelas: ninguém espera uma estrela cadente de presente, para guardar em casa - apenas as admira.

Wolf – Gosto dessa linha. A questão é a seguinte: o esquema da natureza fez com que a vida tenha surgido e, para que ela continue, desenvolveu-se o sexo, do qual o amor, qualquer amor, é uma sublimação. Então o amor é, assim considerando, o supremo objetivo da natureza. Ele é o caminho para que o esquema funcione e a evolução progrida, pois não há evolução sem reprodução. Note que não falo "projeto" e sim "esquema", pois não há plano nenhum nisso, por parte de ninguém. É o que aconteceu de acontecer. E se o que podemos chamar de "Deus" seja, simplesmente, uma personalização abstrata desse esquema, como o concebia Einstein e Espinosa, que não viam em Deus uma pessoa, e, nem mesmo, um ser, então crer em Deus e amá-lo nada mais é do que se amoldar a esse esquema. Como portadores do livre arbítrio, que nos retirou, em parte, do esquema cego e nos concedeu a liberdade de escolha, podemos escolher a salvação, que é, justamente, aderir ao amor, ou a perdição, que é negá-lo. Esse tipo de exegese eu aceito.

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Claro que isso não quer dizer que estamos totalmente de acordo acerca do que seja Deus, ou o Amor, mas pelo menos deixou de haver este “distanciamento”, este “deus-barreira”, entre nós. Mas, talvez ainda falte uma explicação mais profunda acerca do que quero dizer aqui:

Se Deus é pensado como um Ser, ou apenas como um Ser, racionalmente e intuitivamente chegaremos a dilemas sem volta, a paradoxos irreconciliáveis, e invariavelmente dia chegaremos numa certa descrença. Mas, então, será o início, e não o fim... Pois quando finalmente percebermos que Deus é Substância, a Substância que não pode criar a si mesma [2], o Uno que formou tudo o que há através do Movimento, então teremos a genuína experiência de estarmos encharcados por seu Oceano onde quer que cheguemos, em todos os momentos da existência...

Então começaremos a compreender que todos somos parte dele, e todos estamos conectados numa longa teia de luz. E saberemos que é o Amor, só o Amor, a essência de seu Movimento. Então passaremos a amar, pelo prazer de amar, pois o Amor é sua própria recompensa, e quanto mais arde em nossa alma, mais combustível há para que o fogo cresça ainda mais, cada vez mais...

E não teremos nada pelo que crer ou descrer, nem nada a temer. Teremos dado o primeiro passo no caminho, e depois do primeiro já saberemos que a época da escuridão da alma ficou para trás. Será o início da vida, e o fim da sobrevivência.

Mas nada disso se aprende lendo palavras - o Amor não é uma palavra, tampouco Deus.


Se esse conhecimento pudesse ser obtido simplesmente pelo que dizem outros homens, não seria necessário entregar-se a tanto trabalho e esforço, e ninguém se sacrificaria tanto nessa busca. Alguém vai à beira do mar e só vê água salgada, tubarões e peixes. Ele diz: "onde está essa pérola de que falam? Talvez não haja pérola alguma". Como seria possível obter a pérola simplesmente olhando o mar? Mesmo que tivesse de esvaziar o mar cem mil vezes com uma taça, a pérola jamais seria encontrada.

É preciso um mergulhador para encontrá-la...

(...)

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.

(Jalal ad-Din Rumi)

***

[1] Neste livro provocativo (e muito corajoso), Botton defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Ele praticamente inaugura o ateísmo 2.0: uma forma mais tolerante, mais filosófica que eclesiástica (ou antieclesiástica, o que no fundo não é tão diferente, tal como o ódio não é o oposto do amor), de ateísmo.

[2] Espinosa foi quem melhor elaborou a questão para a modernidade, em sua monumental Ética. Porém, tais ideias acerca do Uno, da Substância-Primeira, datam de épocas muito mais antigas, tendo aparecido no hermetismo, na filosofia pré-socrática (particularmente em Parmênides), nos estoicismo e no neoplatonismo. Mesmo no taoismo, não é possível ignorar a abordagem da questão, ainda que de forma poética.

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E aqui terminam, finalmente, as reflexões sobre a espiritualidade e a ciência. Não esqueçam: a luz que reflete numa alma jamais será a mesma luz, por isso é tão importante que sejamos como uma teia de luz. Para que nenhuma ideia de amor, nem mesmo a mais pequenina, se perca...


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Crédito das imagens: todas foram vistas nas redes sociais, portanto não sei dos autores (será que algum deles ficaria chateado?)

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16.5.12

Sai Baba Play

» Parte da série: Play a myth

Se houveram aqueles que souberam falar diretamente ao reino da alma, caminharam no mundo também alguns raros seres que adentraram o reino do mito, e dissolveram seus egos num oceano de bem-aventurança. Embora fossem ainda eles mesmos, eram também um portal vivo para o Infinito, habitados pelos mais belos deuses que a mente humana foi capaz de identificar. Estes são os que falam em nome do amor: os santos...

Jogue, represente, interprete, brinque: play a myth.

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(clique na imagem para abrir em tamanho maior)

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» Saiba mais sobre Sai Baba (na Wikipedia só há entrada em inglês)

» Saiba mais sobre seus mitos e milagres (lembrando que o amor é o maior milagre)

Obs: Para quem confundiu com o Sai Baba mais conhecido (que morreu recentemente na Índia), este é o primeiro Sai Baba, do qual o segundo afirmava ser a reencarnação direta.

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Crédito da imagem: Rafael Arrais + Google Image Search

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15.5.12

A mente encantada

Sigur Rós é uma banda islandesa de som etéreo, profundamente belo e espiritual, tão estranho que por vezes soa alienígena... Um dos motivos é pelo fato de nunca compreendermos racionalmente o que está sendo cantado, até porque eles não fazem a menor questão de cantar em inglês, e geralmente cantam em islandês e outros dialetos locais da Islândia que são ainda mais indecifráveis. Para entender sua música, é preciso abrir a alma, e deixar a mente um pouco de lado, escantada pela beleza do ritmo...

Em dado momento de seu documentário Heima ("Casa"), quando tocaram de graça em diversas regiões da Islândia, a banda acompanha um distinto senhor que canta literalmente com "a alma para fora", o que ainda é uma das coisas mais belas que já vi na música (e estou falando de toda a música)... Pois bem, como a música foi cantada dentro de uma pequena capela cristã, e como parecia ser puramente religiosa, achei que se tratava de algum canto religioso antigo. Vejam abaixo o trecho do documentário onde ela aparece:

(os cavalos em 2:55 ainda são um bônus!)

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Somente recentemente descobri que se trata de um poema cantado, composto pelo próprio cantor - chamado Steindór Andersen - juntamente com a banda. Ocorre que Andersen é um dos maiores cantores (ou declamadores) vivos do Rímur, uma poesia épica que permanece "intocada" na Islândia há mais de 500 anos, e é diretamente influenciada por tradições bárdicas e poéticas ainda mais antigas da mitologia nórdica e viking, como o Poetic Edda e o Skald.

Trago a vocês, portanto, minha tradução desta belíssima música, chamada A ferd til breidafjardar, ou "A mente encantada", seguida logo abaixo pelo áudio (sem interrupções):

A mente encantada
Pelo córrego, o platô e a passagem entre as montanhas;
A esperança é escolhida ali
A oeste de Breiðafjörðinn [1].

Tudo é carregado adiante,
Lama dos sulcos e montanhas,
Porque a primavera floresce com seu perfume
Espalhado dentre todos os caminhos.

O dia conquista o orvalho
Espalhado dentre toda a grama do campo;
As flores da montanha crescem ao redor
De seu rio sagrado.

(...)

Quando não houver compaixão com esse lugar
O povo será dividido,
Porque o portão está aberto
Para a imensidão do mar [2].

"A mente encantada" - Traduzido do inglês por Rafael Arrais. A tradução do islandês (original) para o inglês foi feita por "pias".

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[1] Região costeira da Islândia

[2] Na mitologia nórdica em geral, os mares abertos, que cobrem o horizonte, podem separar mundos (como se separa a Terra do Éden), ou servir como portais para outras dimensões. É preciso lembrar, no entanto, que esta é uma composição moderna, e que é antes uma interpretação moderna deste tipo de mito. A mensagem, entretanto, está lá para quem tem olhos para ver.

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