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4.1.13

Nuvens

» Conto pessoal, da série “Cotidianos”, com breves reflexões acerca dos eventos do dia a dia...

No ciclo de final de ano, todos procuram retornar as suas casas para as comemorações. Como minha casa fica perto das montanhas do litoral, e moro no planalto, voo muito de avião por estas épocas...

Há algo de espiritual em se voar (de avião ou não). Talvez ajude o fato de termos de esperar horas nos embarques e escalas, sentados em cadeiras semiconfortáveis e, principalmente, com bastante tempo de sobra para se ler algum livro. Quando se lê, se imagina. Há algo de espiritual em se imaginar (lendo um livro ou não).

Por exemplo, não sou adepto daqueles fetiches que os homens midiaticóides têm das aeromoças. Para mim elas estão apenas fazendo o seu trabalho, e me interessa mais sua gentileza que sua beleza... Imagino, isto sim, quando alguma garota bonita senta ao meu lado. Ambos viajando sozinhos – mas será que nalgum universo paralelo poderíamos ser amantes viajando juntos? Dizem que os físicos quânticos dizem que essas coisas podem acontecer. E eu acho que até podem, mas que isto nada tem a ver com a indeterminação da Natureza.

A priori, segundo Jesus Cristo, todos nós somos amantes que viajam juntos. A dificuldade está em imaginar a verdade dita, isto é: em vivenciá-la.

Outra coisa que me assalta a mente durante o voo são as turbulências. Antes tinha medo delas, acreditava que poderiam derrubar um avião... Talvez até possam, mas hoje prefiro acreditar que a grande parte delas é apenas um aceno dos silfos que vivem na alta atmosfera. Silfos, como devem saber, são os espíritos do ar... Seria realmente falta de educação atravessar sua casa com tamanha quantidade de metal e combustível e não dar sequer um aceno de volta. Eu também faço isto com a imaginação.

Algumas vezes os silfos também estão celebrando alguma coisa (talvez o final do ano deles?), e convidam as ondinas, sereias e até, nalgumas ocasiões, algumas das nereidas. Conforme construímos nossos aeroportos sem antes consultar seus locais de festividades, algumas vezes há o inconveniente de termos de pousar aviões em meio a tempestades (que é o que ocorre quanto silfos chamam os espíritos da água para o céu)...

Nesses momentos geralmente tememos por nossa vida. Dizem que o pouso em meio à chuva forte é muito perigoso, mas segundo as estatísticas é consideravelmente menos perigoso do que dirigir um automóvel nas mesmas circunstâncias (os gnomos mandaram dizer que sentem saudades de nossas antigas carruagens decoradas). Ainda assim por vezes cremos piamente que iremos morrer, como se a morte fosse algo muito diferente do que deitar a cabeça no travesseiro de nossa cama, à noite, e dormir.

Eu também chegava a temer por minha vida, mas isto foi somente até uma vez em que o avião em que estava arremeteu em meio aos prédios de São Paulo, isto é: abortou o pouso. Como isto nunca havia ocorrido comigo até então, deveria estar morrendo de medo. Mas não estava – simplesmente porque estava apertado para ir ao banheiro. Tudo o que pensava era quando o banheiro seria liberado, independente se o avião faria ou não algum pouso forçado. Por breves momentos, a vontade do número um foi mais forte do que o medo da morte...

Ah, metáforas, metáforas, o que seria de um escritor sem elas! Por exemplo, quando voamos a noite, por vezes é difícil distinguir onde termina a terra dos gnomos, e onde começa o reino dos silfos. Isto é: as luzes das cidadezinhas do planalto se confundem com as estrelas no céu, e por detrás é tudo muito escuro... Mas há uma certa beleza, uma certa metáfora, em imaginarmos que as estrelas do céu podem muito bem ser pequenas cidadezinhas do planalto cósmico, e que as luzes das casas podem marcar as estrelas que vivem em seu interior. Já disseram que todo homem e toda mulher é uma estrela. Os cães e gatos talvez sejam estrelas em formação (os gnomos mandaram dizer que preferem coelhos, mais silenciosos!).

Mesmo Bernardo Soares haveria de se tornar um pouco mais otimista se pudesse viajar da Rua dos Douradores para a Lapa, pelo espaço e pelo tempo, nalgum avião moderno. Não se sabe se acharia mais belas as praias ou as montanhas do Rio de Janeiro – gostaria de viajar ao seu lado só para saber.

Dizem que o avião foi inventado para que o homem pudesse se locomover rapidamente pelos continentes. Outros diriam que foi inventado para que bombas pudessem ser derrubadas em cidades (pequenas ou grandes). Eu já acredito que o avião foi inventado para que pudéssemos conhecer as nuvens.

Claro que todo bom montanhista já conheceu as nuvens, isto é: as observou de cima para baixo. E também é bem conhecido dos anais da história que todo homem, mulher ou criança, montanhista ou não, já percebeu as mais variadas formas sendo brevemente esculpidas pelos silfos em meio às nuvens. Mas o que quero dizer é que somente os primeiros homens voadores puderam atravessar as nuvens do alto, como águias e condores já o fazem há milênios.

Há algo de profundamente espiritual em se atravessar nuvens no reino dos silfos, principalmente quanto o sol está nascendo de manhã, e as salamandras vem surfando seus raios por entre as grandes montanhas brancas a flutuar em lugar algum. Digo, lugar algum, pois quando estamos passando por tal experiência não estamos mesmo um nenhum lugar – exceto, quem sabe, nalgum reino da imaginação.

O homem inventou o avião, mas seria incapaz de inventar as nuvens. Estranho de se pensar: talvez seja isto o que Deus seja afinal... Não as nuvens, nem sequer a escultura que os silfos fizeram delas, mas a experiência de se contemplar uma nuvem em pleno céu, quando já estamos no céu.

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Crédito da foto: Richard Carlson

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