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28.2.14

Alagoas, Curdistão, Deus e o Diabo

Há mais de uma década tenho a felicidade de conhecer um dos maiores grupos musicais em atividade no mundo; E que é, quem diria, brasileiro...

O Mawaca é um grupo que pesquisa e recria a música das mais diversificadas etnias do globo buscando conexões com a música brasileira. Formado por sete cantoras que interpretam canções em mais de dez línguas (línguas indígenas brasileiras, espanhol, búlgaro, finlandês, japonês, húngaro, swahili, grego, árabe, hebraico, ioruba e português), o Mawaca revela no seu nome a essência do seu trabalho. Segundo a etnia hausa do norte da Nigéria os mawaka (cantores-xamãs) recorrem ao poder mágico da palavra cantada para atrair o poder dos espíritos.

Além das sete cantoras o Mawaca é formado por um grupo instrumental acústico que apresenta uma multiplicidade de timbres; acordeom, violoncello, flauta, violino e sax soprano, baixo, além dos instrumentos de percussão como as tablas indianas, derbak árabe, djembés africanos, berimbau, vibrafone, pandeirões do Maranhão e marimba.

Inquilinos do mundo é o mais novo projeto do grupo musical Mawaca. Ele apresenta melodias e ritmos dos povos nômades, refugiados, exilados e ciganos de todo o mundo. Um belíssimo exemplo é a mistura de canções abaixo, iniciando com Min Bêriya Te Kiriye, uma canção de amor do Curdistão, autoria do ativista Sivan Perwer; e terminando com Grande Poder, um legítimo coco da Alagoas, autoria do Mestre Verdelino:

Mawaca é talvez o grupo musical com o leque de influências mais aberto em todo o mundo. Cantam músicas do Brasil e do Curdistão e de todos os cantos de lá para cá, até mesmo do Japão... E, se cantam sobre Deus, tinham de cantar também sobre o Diabo. Abaixo trazemos a canção Mawaca Pra Qualquer Santo, cuja letra é uma adaptação do cordel Brosogó, militão e o Diabo, de Patativa do Assaré:

***

Crédito da imagem: Igor Maikov

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23.2.14

A tua estrela

Se não posso estar agora ao teu lado
Se não posso te olhar face a face
Te despir, te beijar e te ter por toda pele
Lhe ofereço o céu:
Olha para esta noite tão negra e nebulosa
Olha e imagina as estrelas além destas nuvens

Escolha uma delas

Que nesta doce imaginação pode ser
Que ainda tão distantes um do outro
Possamos, quem sabe, ter escolhido juntos
A mesma estrela...

A tua estrela


raph’14
em memória aos amores distantes...

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Crédito da foto: Google Image Search

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19.2.14

A educação de Casanova, parte 5

A educação de Casanova

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 4


5.

Acordei numa viela estreita com o som das buzinas dos carros. Certamente não estava mais em Beyazit, e nem mesmo naquele continente, a julgar pelo inglês tipicamente americano, tipicamente apressado, que ecoava pela noitinha daquele lugar.

Que lugar? A dúvida prevaleceu somente até que eu deixasse a viela e contemplasse a Las Vegas Boulevard, com todos os seus neons, toda a sua alegria e toda a sua superficialidade. Pessoas vinham de todos os cantos do mundo se divertir e apostar em Las Vegas, mas o que era feito por lá, ficava lá... Eram como pequenas vidas breves que ocorriam no espaço de uma semana de turismo e de desejos desenfreados.

Mas o que diabos Asik tramava, o que queria me ensinar me enviando para tal lugar? Seria um teste? Será que ele acreditava que o velho Giacomo, o entediado, ainda estava no controle? Será que ele realmente achava que eu iria novamente me entregar aquela vida? Não vou negar que esta suposta desconfiança me deixava um tanto chateado – isso não era o costume de meu amigo.

Então ele se aproximou, sem que eu pudesse percebê-lo, e encostou levemente em meu ombro:

“Hola, Giacomo, bem vindo aos prados de neon!”

“Porque fez a Deusa me trazer até aqui? E porque aqui? E porque este chapéu de cowboy ridículo?”

“Ora, Giacomo, se me fosse conveniente apresentar-me como místico em todas as paragens, andaria sempre vestido com meu manto. Mas hoje em dia as pessoas não acreditam mais em místicos, então eu uso este chapéu, para que acreditem em mim, para que me chamem de ‘normal’ e me deixem em paz...”

“E qual é a lição que vim aprender aqui? Ou por acaso ainda não acredita que o velho Giacomo se foi?”

“Ora, meu velho amigo, lições aprendemos todos os dias, mas isto não significa que devemos abandonar quem fomos... Somos o que somos hoje exatamente por havermos sido o que fomos ontem. Não há nada por ser abandonado, nenhuma culpa intransponível, nenhuma fera por demais monstruosa. Todas as lições que aprendi até hoje, ao menos as que me serviram de alguma ajuda, foram lições de domesticação – domesticação das feras interiores!”

(era impressionante como o pensamento de Asik estava sempre pelo menos duas ou três voltas à frente do meu)

“Bem, neste caso fico feliz que não esteja duvidando de meu progresso na Grande Arte da Putaria. Mas, ainda me resta uma enorme dúvida acerca do que exatamente viemos fazer nesta Boulevard?”

Asik então apenas respondeu, “Ver os ursos dançantes, ora essa”, e em seguida chamou um taxi, no qual entramos e seguimos até uma distinta casa de festas a cerca de três ou quatro quilômetros da Boulevard.

Eu estava, é claro, um tanto curioso e cheio de questões acerca dos tais “ursos dançantes”, mas sabia que seria inútil tentar tirar mais alguma informação de meu amigo. Se havia uma coisa que ele prezava, era guardar mistério acerca dos eventos aos quais me conduzia...

Chegamos enfim num largo salão com um pequeno palco num canto, e cerca de quarenta ou cinquenta cadeiras e algumas mesas cheias de drinks e salgadinhos finos. Estava ainda vazio, e toda a informação que pude conseguir era a ilustração de uma cabeça de urso rechonchuda e circular, que mais parecia um personagem de desenhos animados infantis, e se encontrava acima do palco – seria uma festa para crianças?

“Não, não serão crianças que virão aqui a esta hora da noite, Giacomo” – disse Asik, prevendo meus pensamentos quando fiquei encarando a ilustração – “mas em todo caso devemos nos esconder ali naquele canto, pois que tampouco se trava de um evento para homens, ou mitos masculinos.”

E, enquanto nos escondíamos atrás de uma pilastra circular, o portão principal da casa de festas foi aberto (só então percebi que havíamos entrado sem convite) e dezenas de mulheres, algumas jovens, outras nem tanto, mas todas muito bem trajadas, adentraram o salão e se acomodaram, alegres, nas cadeiras.

Uma delas parecia ser a mais festejada de todas, atraindo todos os olhares para o seu vestido azul escuro com um decote que faria o velho Giacomo quase saltar do esconderijo em sua direção... Mas o que diabos era aquilo, afinal, uma festa de aniversário somente para mulheres? Tive de encerrar aquele mistério ali mesmo:

“Asik, meu amigo, o que diabos essas mulheres vieram fazer aqui? O que isso tem a ver com ursos?”

“Dançantes! Ursos dançantes, meu caro Giacomo... Viemos contemplar a maior festa dos casamentos de Las Vegas, a que ocorre ainda antes, a despedida de solteira!”


***

Esta foi a quinta parte de A educação de Casanova, por raph em 2014.
Comece a ler do início | Veja a sexta parte


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13.2.14

Uma breve consideração sobre a existência de Deus

Muito se debate sobre a existência ou não existência de Deus. Como alguns devem saber, eu considero este um debate particularmente inútil.

Há ateus ferozes que acusam de infantil e fantasioso qualquer um que creia num “velho de barba muito branca que sabe de antemão quando cada fio do seu cabelo cairá”. No entanto, isto foi um espantalho de deus que foi criado; e qualquer místico, isto é, qualquer um que já observou a Deus de relance, sabe que se trata somente de um espantalho.

No fundo, todos nós, mesmo os ateus mais ferozes, sabemos por intuição própria que nada pode surgir do nada, nem mesmo um espantalho ou as leis que permitem as flutuações quânticas no vácuo. Até mesmo os yorubás, que trouxemos acorrentados de sua terra natal, e que tanto acusamos de “paganismo”, sabem que os orixás não surgiram do nada e tampouco criaram a si mesmos – são, todos eles, filhos de ainda outra entidade que os precedeu, chamada Olorun, e para a qual não se fazem oferendas ou cultos, pois ela já é todas as oferendas e já se encontra presente em todos os cultos.

E, se não acreditam nos yorubás, podem ler o grande Espinosa, que disse algo muito parecido em sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras. O que Espinosa talvez não tenha compreendido é que a “demonstração geométrica” era em realidade desnecessária, sendo apenas uma espécie de óculos para enxergar com a razão lógica o que a intuição já enxergava muito bem há tempos, e sempre enxergou!

No entanto, o fato de sabermos que existe um Deus anterior e acima de qualquer espantalho ou “teoria do tudo” não significa que saibamos exatamente como é a face deste Deus, ou sequer que ele tenha alguma face...

É neste sentido que há muitos místicos que concordam plenamente com os agnósticos: “Nós o vimos de relance, mas não sabemos se um dia o veremos face a face”. Ou, como diria Feynman, “a inefável natureza da Natureza”!

Mas que sabe dançar, isto ele sabe...

***

Crédito da imagem: Grafite de Cosmo Sarson (em Bristol, Ingalterra)

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11.2.14

O poeta da alma

O próximo livro digital das Edições Textos para Reflexão será uma tradução da obra com a qual Rabindranath Tagore, poeta nascido em Bengala, se tornou o primeiro vencedor não europeu do Prêmio Nobel de Literatura, em 1913.

Nesta tradução direta do original em inglês de Gitanjali ("oferenda de canções" ou "oferenda lírica"), ainda contaremos com uma introdução luxuosa de outro grande poeta vencedor do Nobel, o irlandês William Buttler Yeats, cuja poesia foi diretamente influenciada por Tagore.

Abaixo, segue um trecho do livro que compõe o Prefácio juntamente com a introdução de Yeats:

***

O Grande Mestre

Assim Mahatma Gandhi o chamava. Aliás, quem deu a alcunha de Mahatma (“Grande Alma”) a Gandhi foi o próprio Tagore.

Não somente o Prêmio Nobel de Literatura de 1913, mas o primeiro não europeu a merecer tal homenagem.

E, até hoje, quando ouvimos aos hinos da Índia ou de Bangladesh, ouvimos a composições suas.

Mas Tagore foi muito mais do que um compositor de hinos, um Prêmio Nobel, ou mesmo um “grande mestre”. Tagore foi um poeta da alma, um grande místico, e talvez isto por si só, ou somente isto, possa explicar a qualidade inefável e atemporal de seus poemas, contos, textos e músicas.

Rabindranath Tagore nasceu em 1861, em Calcultá, na época capital da Índia inglesa e coração da Bengala renascente. Nessa metrópole particularmente ativa, três gerações dos Tagore participaram, no decorrer do século XIX, na criação e no desenvolvimento de importantes movimentos culturais e religiosos.

Na residência de sua família desfilavam as personalidades mais marcantes da época, tanto no domínio das artes e das letras como no da política, da espiritualidade ou da filosofia. Foi nessa atmosfera que Tagore compôs seus primeiros versos, ainda com 10 anos de idade. Logo que atingiu a adolescência, começou a publicar seus textos em um periódico literário e, durante os sessenta anos seguintes, produziu uma obra imensa: poemas, cantos, óperas, romances, peças de teatro, novelas e numerosos volumes de ensaios que falavam sobre praticamente todos os domínios da vida.

Além disso, Tagore tomou parte, diretamente ou através de seus escritos, nas grandes manifestações de protesto que, a partir do fim do século XIX, balizaram a longa luta da Índia por libertação do domínio britânico. Entretanto, o próprio Tagore morou e estudou Direito nas Ilhas Britânicas, e sempre manteve amigos por lá – em sua maioria, intelectuais.

Já no ocaso da vida, ao decorrer de inúmeras viagens ao redor do mundo, se lançou numa longa cruzada pela união entre os povos, precisamente num período em que tanto a Europa quanto a Ásia viam nascer poderosos partidos nacionalistas.

Mas, apesar de desgostoso com o caminhar da política mundial, Tagore era um educador em sua alma, e sentia enorme alegria em poder ensinar. Tanto que fundou uma escola, em Santiniketan (“a morada da paz”), cerca de cem quilômetros ao norte de Calcutá, e nela criou o seu santuário. Lá viveu até o fim de seus dias cercado da família, de amigos e discípulos – ensinando a todos.

Seu sistema de educação, revolucionário para a época, era a antítese dos sistemas oficializados com suas “cartilhas”. Em Santiniketan, a criança devia ser reconhecida como um indivíduo com plenos direitos. A meta era ajudá-la a se desenvolver, da melhor forma possível, segundo seus desejos, vocações e gostos pessoais.

No santuário de Tagore a vida era organizada de tal forma que sua sensibilidade e sua imaginação podiam ser constantemente alimentadas por um contato permanente com a natureza, e por um livre acesso a todas as formas de arte ou de expressão de si mesmo. Na realidade, os que para lá se dirigiam não buscavam somente desenvolver suas faculdades mentais, mas abrir suas almas para uma espiritualidade viva e livre de dogmas.

Tagore conservou até o seu último dia a fé no homem espiritual, no homem do amanhã. Ele foi um daqueles poucos, pouquíssimos, que não se contentou em simplesmente esperar pelo Céu – tratou de tentar erguê-lo aqui mesmo, neste mundo...

Onde a mente encontra-se sem medo e a cabeça é mantida erguida
Onde o conhecimento é livre
Onde o mundo não foi quebrado em fragmentos
Por estreitos muros domésticos
Onde as palavras vêm da verdade profunda
Onde laboriosas lutas esticam seus braços em direção à perfeição
Onde o riacho límpido da razão não perdeu seu rumo
Afluindo ao triste deserto dos hábitos moribundos
Onde a mente é direcionada adiante por você
A pensamentos e ações sempre em constante afloramento
Nesse céu de liberdade, Pai, deixe meu país acordar

Céu de liberdade, poema #35 do Gitanjali

***

O livro será traduzido do inglês por Rafael Arrais.


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5.2.14

Encontrando Eu

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).


Noutro conto anterior desta série eu falei, de forma um tanto breve, sobre o meu encontro com o meu Eu [1], e agora chegou o momento de relatar com maiores detalhes este e os outros dois encontros que eu tive com tal entidade nesta vida, ao menos até o dia de hoje...

I

Na primeira vez que o vi, estava em realidade “viajando” dentro de minha própria mente, e o meu primeiro impulso foi o de considerá-lo alguma espécie de guia espiritual que apareceu para me guiar pelo percurso.

No entanto, bastou eu me aproximar mais (o “cenário mental” era o de uma área plana e gramada, se é que isso tem alguma importância) para tomar um dos maiores sustos da minha vida e perceber que em realidade estava, de uma forma um tanto estranha, encarando a mim mesmo e, ao mesmo tempo, encarando tudo o que eu sou, muito, muito além do que o meu ego acredita ser nesta vida – gota de inúmeras outras.

O que a distância parecia uma pessoa, de mais perto lembrava mais uma carcaça humana com uma luz tão forte em seu interior, que a irradiava para fora, principalmente pelas cavidades dos olhos e da boca. A imagem moderna mais próxima que já encontrei disto que presenciei em minha mente foi vista numa série de desenho animado baseada na mitologia oriental em geral: Avatar, A Lenda de Aang (talvez já tenham visto também, e vão saber de qual tipo de imagem estou falando) [2].

Conforme descrevi no outro conto, eu mal consegui me aproximar de Eu, e mesmo os poucos momentos em que o encarei me trouxeram, na época, o maior medo que já havia me lembrado de haver sentido. Não se tratava de um medo racional ou de um medo de ser ferido ou morto fisicamente, mas um medo que vinha do fundo da alma: o medo de saber de tudo o que fui e de tudo o que fiz, de bom ou de mal, em inúmeras vidas, e talvez ir até muito além disso... Enfim, é o tipo de coisa que as palavras, essas cascas de sentimento, não conseguem transmitir. Um PUTA MEDO talvez fosse a tradução mais correta.

Essa experiência que ocorreu durante a minha primeira regressão de memória foi tão forte, embora brevíssima, que até hoje lembro mais dela do que do restante da regressão (apesar de o restante ter sido um tanto impactante, conforme falo no outro conto). Fato é que, apesar de eu ter ficado petrificado de medo ante Eu, a mesma força que me mantinha paralisado carregava uma semente de curiosidade, uma vontade oculta de, quem sabe numa próxima vez, conseguir me aproximar mais, conseguir ter a coragem genuína de vê-lo face a face. O que sei é que não seria fácil, e que dependia somente de mim mesmo conseguir agir de outra forma, se me fosse dada outra oportunidade para tal encontro divino.


II

É então que se passam alguns anos e eu o encontro novamente num sonho. Não me lembro exatamente do ano, mas na verdade me lembro dele como se fosse ontem... Eu só sei que ele ocorreu em algum momento entre os anos 1999 e 2003 porque anotei sobre a regressão em 1999, e até 2003 dormia no mesmo apartamento onde tive o sonho, na zona sul do Rio de Janeiro.

No sonho, eu me aventurava numa torre escura, medieval, como alguma espécie de espião, ou simplesmente um curioso. Como todo sonho, a forma tem bem menos importância que a simbologia, e a simbologia tem ainda menos importância do que os sentimentos vivenciados. Eu tenho quase certeza que teria me esquecido deste sonho, como me esqueço de quase todos, se não fosse pelo desfecho dele...

Voltando ao sonho: Eu subia pelos degraus antigos e espiralados desta torre com a sensação avassaladora de que estava me aventurando em terreno proibido, e que os segredos que ela encerrava estavam ocultos por um bom motivo – mas mesmo assim eu, como grande curioso, me arriscava na busca por os desvelar.

Em dado momento cheguei onde aparentemente queria chegar, uma sala relativamente grande cheia de estantes de madeira velha com grandes livros e tomos empoeirados. Pelo fato de ter lido muitos livros de J.R.R. Tolkien e de haver jogado Role Playing Games, provavelmente as imagens mentais foram influenciadas pela chamada Fantasia Medieval, mas fato é que, em essência, eu estava ali, em terreno proibido, tendo acesso a segredos e informações que não eram acessíveis a qualquer um. Era um misto de excitação e medo de ser pego.

Medo? Para que falar nele de novo, não é mesmo? Eis que, quando estava lendo as primeiras linhas do primeiro tomo que retirei da estante mais próxima, surge um velho num manto negro na entrada da sala, de barbas e cabelos grandes e muito brancos, e um olhar raivoso.

Por um breve momento, ainda antes que ele esboçasse qualquer reação, pude reconhecê-lo: era Eu, novamente Eu, e todo aquele “aparato simbólico” do parágrafo anterior era tão somente minha imaginação tentando dar forma humana ao que está além de toda forma...

“SAIA IMEDIATAMENTE DAQUI”, foi o que a entidade gritou (sem usar a boca, como é comum nos sonhos). E, no momento seguinte eu estava correndo, desesperadamente, até que quase me choquei com a porta da cozinha!

Sim, eu havia não somente acordado e saltado da cama, como saído do meu quarto e atravessado todo o corredor do apartamento até quase me esborrachar na porta fechada da cozinha. E, sim, eu já não estava mais sonhando... Nunca tive outro sonho tão intenso em toda esta vida.


III

Finalmente, o último encontro que tive com Eu foi há poucos anos atrás, num Centro Espírita da cidade onde moro atualmente, Campo Grande.

Neste Centro Espírita, aos finais de semana há um encontro chamado Oficina dos Sentimentos, onde as práticas lembram muito mais uma terapia de grupo, com alguma meditação transcendental, do que os rituais espíritas mais conhecidos. Pois bem, e foi exatamente numa dessas meditações, cujo tema eu já nem me lembro mais qual era [3], que encontrei Eu novamente.

Era um belo cenário natural, que eu normalmente “evoco” em minha mente durante os rituais espiritualistas em geral, com montes e planícies verdejantes, uma cachoeira a distância e um pequeno córrego a atravessar a paisagem. Eu estava no topo de um monte e percebi que Eu estava no outro, distante o suficiente para que eu o pudesse observar, desta vez sem nenhum grande medo. Eu o reconheci prontamente, e aquela primeira curiosidade, aquela vontade genuína de caminhar em sua direção, floresceu novamente em meu coração.

A entidade sorriu, e apontou para o espaço gramado que separava o seu monte do meu. Ali havia um caminho, sinuoso, que parecia simbolizar que ainda precisaria dar muitos passos para que pudesse, finalmente, o ver face a face, sem medo, sem dúvidas ou certezas.

E todo o medo que eu senti em nosso primeiro encontro agora aparecia na mesma intensidade, só que em outra forma, em outra sensação – uma sensação de entusiasmo, entusiasmo, entusiasmo! Valia a pena viver, e seguir naquela via sinuosa, contanto que soubesse que, a cada passo, o momento de nosso encontro se aproximava. Um passo de cada vez.

Há muitas informações desencontradas acerca do que é exatamente este Eu. Dentre outros problemas em descrevê-lo objetivamente, há o fato de que o Eu é também eu mesmo, de modo que existe o “meu eu” e o “seu eu” e o “eu de cada um”. Mas eu não usei maiúsculas sem uma boa razão: ocorre que o “eu de cada um” é também uma parte, um reflexo no espelho, da Luz do Sol, do Eu Maior, do Ser que preenche e dá vida a todos os seres do Cosmos, e do próprio Cosmos.

E a sensação que se sente ante este encontro com a Vida, e com a ânsia da Vida por si mesma, é algo que foge tanto da linguagem que qualquer tentativa de captura-la seria tão frutífera como tentar capturar um raio solar com as mãos...

Um PUTA ENTUSIASMO talvez fosse a tradução mais correta.


***

Entusiasmo (do grego en + theos, literalmente “em Deus”) originalmente significava inspiração ou possessão por uma entidade divina ou pela presença de Deus. Atualmente, pode ser entendido como um estado de grande arrebatamento e alegria.

***

Tu que és eu mesmo, além de tudo meu;
Sem natureza, inominado, ateu;
Que quando o mais se esfuma, ficas no crisol;
Tu que és o segredo e o coração do Sol;

Tu que és a escondida fonte do universo;
Tu solitário, real fogo no bastão imerso;
Sempre abrasando; tu que és a só semente;
De liberdade, vida, amor e luz eternamente;

Tu, além da visão e da palavra;
Tu eu invoco; e assim meu fogo lavra!
Tu eu invoco, minha vida, meu farol,
Tu que és o segredo e o coração do Sol

E aquele arcano dos arcanos santo
Do qual eu sou veículo e sou manto
Demonstra teu terrível, doce brilho:
Aparece, como é lei, neste teu filho!

O Ofício do Hino, Aleister Crowley (trad. Marcelo Ramos Motta)

***

Senhor, tu és meu amante, meu anseio, minha fonte eterna, meu Sol, e eu sou teu reflexo. O dia de meu despertar espiritual foi aquele em que eu vi, e soube que eu vi, todas as coisas em Deus, e Deus em todas as coisas.

Mechthild von Magdeburg, mística católica alemã

***

[1] Ver Abrindo portas na mente (o encontro é descrito nos trechos finais da primeira parte).

[2] A imagem que ilustra este conto foi retirada desta série animada.

[3] Cada encontro tinha um tema geralmente atrelado a um sentimento. Poderíamos estar meditando sobre “a raiva” ou “o amor”, coisas assim.

Crédito da imagem: Avatar, A Lenda de Aang (Divulgação)

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