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31.12.14

Qual é a reforma fiscal ideal?

Parte da série “Entre a esquerda e a direita”, onde Alfredo Carvalho e Igor Teo respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre a proposta da série e seus participantes, não deixe de ler nossa apresentação.

[Raph] É muito comum ouvirmos reclamações dos contribuintes acerca do valor dos seus impostos, isto é algo praticamente tão antigo quanto a própria civilização, mas no Brasil ocorre algo um tanto curioso. Nosso sistema tributário é tão complexo que muitas empresas precisam ter grandes equipes de contadores para dar conta da burocracia. Uma simplificação do sistema, ainda que não diminuísse o valor final dos tributos, já seria um enorme ganho de produtividade para o país. Ao mesmo tempo, os impostos sobre as pessoas físicas são relativamente altos, porém um dos mais injustos do planeta: enquanto a alíquota mais alta sobre a renda não passa de 27,5% (em muitos países europeus ela passa dos 50%) e o imposto sobre a herança é de cerca de 4% (muito abaixo da média mundial), temos alguns dos impostos indiretos mais altos do globo. Eles são aplicados diretamente a tudo o que consumimos, de forma que tanto o milionário quanto o miserável pagam exatamente o mesmo imposto sobre um quilo de arroz ou uma geladeira. Diante dessas informações, vamos fazer um exercício de imaginação: digamos que você fosse convidado pelo governo para fazer parte de uma equipe com a função de dar sugestões para uma tão necessária reforma fiscal – qual seria a sua reforma ideal?

[Carvalho] Pensar uma reforma fiscal não é tarefa fácil e nem mesmo mediana. É, na verdade, uma empreitada bastante complexa, que envolve reflexões profundas sobre as funções teóricas do Estado assim como sobre as especificidades concretas da estrutura administrativa que se pretende reformar. Abrange desde juízos ideológicos gerais até diagnósticos minuciosos do sistema institucional vigente. Sendo assim, tendo em vista as limitações de espaço deste texto, decidi centrar minha análise em alguns poucos aspectos mais práticos, mas é interessante que ela seja lida considerando um pano de fundo liberal-conservador, que aponta na direção de uma diminuição do Estado, embora longe de flertar com a ideia radical de uma sociedade sem ele e sem instigar qualquer ruptura revolucionária da ordem vigente.

Nesse sentido, o primeiro elemento que considero essencial analisar é a nossa Constituição Federal, o texto fundamental que define a nossa estrutura político-administrativa e as bases do sistema de tributos que a sustenta. Ali podemos notar a convivência conflitante entre diversas ideologias, resultando no delineamento teórico de um eclético estado de bem-estar, organizado sob a forma de uma federação em três níveis – federal, estadual e municipal – com repartição de competências entre eles. É justamente aí, a meu ver, que uma boa reforma fiscal poderia começar.

Penso que a constituição de 1988 acertou ao elevar os municípios à condição de entes federados, atribuindo-lhes competências próprias, mas errou ao destinar-lhes uma parcela relativamente pequena da arrecadação de tributos – algo em torno de 5% de tudo o que é arrecadado no país [1]. Assim, acredito que um processo de descentralização de competências tributárias para correção dessa distorção seria um primeiro passo para dar mais eficiência aos sistemas de arrecadação e de aplicação dos recursos públicos. Isso aproximaria tais sistemas dos reais problemas das comunidades e dos cidadãos pagadores de impostos – os maiores interessados em todo o processo – possibilitando um controle social mais efetivo e alinhado com os interesses locais.

Duas outras formas de abordar a reforma fiscal sem causar no sistema um choque traumático de liberalismo econômico [2] seriam, por um lado, o aprimoramento do sistema tributário sem redução imediata da carga, e, por outro, a redução dos gastos públicos sem redução imediata das competências estatais, adotando uma perspectiva de ação centrada na melhoria da eficiência.

Com relação ao sistema tributário, conforme já foi dito, uma mera simplificação da intricada teia de impostos, taxas e contribuições já seria ótima para o país, diminuindo o tempo perdido por empresas e pessoas físicas em atividades contábeis, e permitindo um desenvolvimento mais natural e saudável da economia. Nesse âmbito, tenho duas sugestões principais: primeiro, elaborar uma norma geral exigindo que todas as informações sobre um determinado imposto sejam sempre compiladas e atualizadas em uma única lei, e não pulverizadas em uma infinidade delas; e, segundo, instituir um serviço nacional de acompanhamento e compilação das alterações tributárias estaduais e municipais para auxiliar empresas e profissionais que atuam simultaneamente em diversos entes da federação, e, repetidas vezes, recebem multas por ilegalidades fiscais que nem sabiam estar cometendo.

Já pelo lado dos gastos, há uma infinidade de pontos onde a eficiência estatal deveria ser aperfeiçoada, mas dois deles têm relevância fundamental no orçamento: a gestão do funcionalismo público e as políticas de endividamento do Estado. O primeiro ponto é relevante porque o ambiente de amadorismo crônico da maioria dos órgãos públicos, com raras e honrosas exceções, contribui para a ineficiência de toda a máquina administrativa. Assim, seria muito útil levar para a administração pública alguns princípios de administração de empresas, recompensando o profissionalismo, a eficiência e a proatividade – inclusive nos critérios de nomeação das chefias – e desencorajando a ineficiência e a falta de compromisso, dentre outros vícios típicos desse meio.

A questão da dívida, por sua vez, é relevante porque compromete quase metade do orçamento anual da União. Neste caso, em vez de ficarmos chorando por uma auditoria da dívida, torcendo para surgir algum motivo nebuloso que justifique um calote, penso que o mais correto mesmo seria ter a paciência de adotar uma política de crescimento economicamente sustentável, sem dar asas às tentações de enriquecimento rápido e artificial das políticas desenvolvimentistas, que elevam o PIB, mas sempre elevam também as dívidas junto com ele.

Em três palavras, eis o resumo das minhas sugestões: descentralização, eficiência e paciência. No médio prazo, creio que essas três coisinhas poderiam fazer muito bem a esse país, mas são apenas o básico de uma reforma técnica. O problema é que o Brasil precisa de muito mais que uma reforma fiscal. Precisa de uma reforma de valores, de um resgate da indigência cultural. O que o Brasil precisa, isso sim, é de uma faxina geral.

[Teo] Vivemos em uma sociedade completamente desigual. No Brasil, 80% da população vive com menos de mil reais por mês. Provavelmente, o leitor deste blog, mesmo não fazendo parte da classe alta, deve possuir uma vida confortável e segura em relação a essa população. Fato é que a maior parte de nossa população não possui acesso à educação de qualidade, serviços de saúde, saneamento básico, transporte, entre outros. Esta desigualdade não é um mal ocasional, mas estrutural ao próprio capitalismo, que se marca como uma ordem em que para existir acumulação de capital há necessariamente exploração.

Enquanto isso, os 0,9% mais ricos do país detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza. Ou seja, menos de 1% é possuidora de mais da metade da riqueza nacional. Existe uma farra das grandes fortunas, que ideologicamente aprendemos a admirar, sonhando nos tornar um desses bilionários do alto da pirâmide social, embora a probabilidade desta ascensão é ínfima. Como a divisão subsequente tampouco é equânime, a desigualdade vai crescendo nos outros estratos.  A chamada classe média, que consegue sobreviver com o mínimo de dignidade, muitas vezes é contra políticas de redistribuição de renda porque erroneamente crê que esta se daria através da perda de seus recursos, que já não são muitos. E ao combaterem essa ideia não estão ajudando a si, mas ao 1% que detém grandes fortunas.

Quando falo em desigualdade social não falo de um mundo em que alguns ganham pouco mais que outros, despertando inveja naqueles que ganham menos. Desigualdade social é a existência de um excedente incomensurável a uma classe, enquanto outra vive na miséria. É a marginalização de milhões de pessoas, expostas a um cotidiano de exploração, péssimas condições de sobrevivência, exclusão em relação a todos os avanços sociais e científicos. Falar sobre isso não nos faz comunistas, se comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990. Por sua vez, o sucesso do capitalismo chinês liderado pelo que chamaram de comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e democracia é facilmente rompível. Somos comunistas em apenas um sentido: importamos-nos com os bens comuns, da natureza e do conhecimento, que estão sendo ameaçados.

Neste sentido surge a importância do Estado. Não este como conhecemos, como uma instituição corrompida pelos interesses do capital e dos pequenos grupos que se apossam dele para governar em causa própria. O Estado é um possível defensor do bem-estar coletivo através de políticas sociais, e em sua ausência ficamos desprotegidos frente aos interesses de lucro e exploração das grandes corporações. Quando crimes estão sendo cometidos contra o meio ambiente e aos seres humanos, o Estado, como um poder instituído tem o potencial de defender o interesse comum, caso o povo se articule democraticamente para tanto.

Estado não é sinônimo de um centralismo a governar a vida de todos incessantemente. Talvez o motivo para esta desconfiança seja que o Estado brasileiro combine atuações extremamente invasivas à liberdade individual em determinadas situações com um mero descaso em assuntos que deviam ter mais cuidado e participação. Do mesmo modo, políticas sociais não significam o “paternalismo” com claros interesses eleitorais, mas sim a construção de uma estrutura social que garanta o mínimo de qualidade de vida à população. Como seu objetivo é o interesse coletivo, o Estado deve garantir serviços de qualidade em educação, segurança, saúde, transporte, e tantos outros direitos que julgamos essenciais a todos na modernidade.

Os recursos para o Estado e à promoção de suas políticas sociais advêm de nós mesmos. Como afirmado na muito precisa análise do Raph, no Brasil nos encontramos com uma pluralidade de impostos que nos impõe uma sobretarifação em nossas atividades, bem como uma desigualdade sobre quem recaem esses impostos. Quem muito possui não paga tanto quanto pagaria em outros países (como em alguns países nórdicos, que além de um alto imposto de renda há o melhor IDH do mundo) e quem ganha pouco se vê afogado em tarifas. Além disso, o imposto de renda, os impostos sobre herança e sobre ganhos do capital são mais brandos do que em “países desenvolvidos”, como Suécia, Alemanha e Estados Unidos. Desse modo, dentro de uma economia capitalista (sempre lembrando: também podemos pensar em outras alternativas) uma possibilidade é introduzir uma proporcionalidade que corresponda à realidade nesta equação.

Desafogando a classe média e baixa, é possível ainda obter recursos através da tributação sobre grandes fortunas. Aos que pertencem a classe alta: isto não afetaria a vida confortável e luxuosa com muitos excedentes em relação ao cidadão médio. O que acontece é que simplesmente não é justo que, por exemplo, com um excedente de recursos disponíveis, pessoas morram por falta de dinheiro para bancar um tratamento de saúde. Creio que podemos pensar em uma sociedade melhor do que naturalizar um discurso de “não tem dinheiro, problema teu, corre atrás porque só através do capital você vai ter algum direito nessa vida.

Dentro do capitalismo, na competitividade do mercado, a riqueza tende a se concentrar em pequenos grupos através da formação de trustes, cartéis, etc. Isto é, a reunião de grupos de poder para afirmarem a conservação de sua vantagem e aumentar sua capacidade de lucro e exploração. Neste sentido, ao contrário das ideias utópicas do liberalismo, o capital tende a se acumular. A desigualdade social, estrutural ao capitalismo, leva ao aumento da criminalidade, violência, marginalização, e por aí vai.

A configuração da tributação brasileira favorece a concentração existente. Se não abandonarmos o capitalismo (talvez a vida humana seja simplesmente destruída em uma catástrofe ecológica antes disso), ao menos devemos pensar em políticas sociais que garantam serviços de qualidade e proteção à população de modo geral, e não privilégios infinitos às elites do capital a despeito de quem sustenta esta riqueza. Deste modo, talvez devemos pensar numa reforma tributária que alivie o bolso de quem os custos de vida já estão altos demais, tributando mais de quem a vida é de excedentes incomensuráveis, e assim, revertermos esses valores em qualidade de vida para todos.

***

[1] O percentual cresce se considerarmos as transferências de recursos da União e dos estados, mas acredito que esse sistema mantém os municípios muito dependentes das políticas federais e estaduais.

[2] Haja vista a demonização histérica do liberalismo promovida durante décadas por setores radicais da esquerda, tanto que se tornou comum pessoas utilizarem a palavra “neoliberal” como um xingamento sem terem a mínima noção do significado preciso do termo.

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Crédito da imagem: Google Image Search

O debate continua nos comentários, não deixem de acompanhar.

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2 comentários:

Anonymous Felipe R disse...

Bom dia,

Colocarei alguns fatos primeiro, e depois faço meus comentários.

1 - A receita estatal deixou de ser puramente tributária ainda no século 14, quando várias cidades italianas, em especial Florença, começaram a utilizar o que chamamos hoje de "títulos públicos" (Ferguson 2008). Desde então, praticamente todos os Estados são deficitários. Os títulos eram lastreados em impostos futuros. Os governos daquelas cidades adotaram a referida prática principalmente para promover suas campanhas bélicas. Já no Brasil, nossa dívida pública tem destinações muito específicas, denominadas Despesas de Capital, conforme previsto no Art. 13º da Lei 4.320/64. Na prática, o que fazemos é "rolar" a dívida pública, ou seja, pegamos dinheiro emprestado hoje para pagar o dinheiro que pegamos emprestado ontem.

2 - Os principais tributos tem vários tipos de fontes de incidência em nosso país, mas vou dividir dois grupos: sobre renda/lucro e patrimônio; e sobre consumo de bens e serviços. O primeiro é, em alguns casos, progressivo dentro de uma faixa, ou seja, quanto maior o tamanho da fonte, maior a tributação, limitado a um máximo percentual (Ex: Imposto de Renda - IR); e, em outros, é um percentual do valor da fonte, sem progressão (Ex: IPVA). Já o segundo, o tributo a ser pago será maior, quanto maior for o consumo (Ex: ICMS). Em outras palavras, o primeiro grupo trata os desiguais de forma desigual (até determinado ponto), enquanto que o segundo trata os desiguais absolutamente de forma igual. Em números: (primeiro grupo) quem tem renda de R$ 250,0 mil reais por ano, paga aproximadamente R$ 68,8 mil reais de IR, enquanto que quem ganha R$ 25,0 mil por ano, está isento de pagar IR; (segundo grupo) se a pessoa gastar 300 reais de gasolina em SP, vai pagar 75 reais de imposto; se gastar 100 reais, vai pagar 25 reais. Neste, se o rico e o pobre gastam o mesmo com gasolina, digamos 300, pagarão o mesmo valor em tributos, e, obviamente, 75 reais para um pobre tem um peso maior em sua renda, em relação ao rico. No Brasil, a relação entre arrecadação sobre o primeiro grupo e o segundo grupo é praticamente 1, bem maior que a de países ricos (OCDE 2013). Além disso, pode ser evrificada forte correlação positiva entre índice Gini e peso de tributo sobre consumo em relação ao total (OCDE 2013).

3 - Em contabilidade, tributo é despesa. E a maior parcela dessa despesa será absorvida pelo consumidor. Logicamente, quanto maior o preço final do produto ou serviço, menos pessoas terão acesso. Isso pode ser visto na forte correlação entre índice Gini e peso de tributo sobre consumo (OCDE 2013), em que, quanto maior este, maior aquele.


A assimetria entre receita e responsabilidade do ente estatal federado brasileiro já foi colocada pelo Alfredo, então não vou repetir aqui.

5/1/15 10:22  
Anonymous Felipe R disse...

Mini comentários:

- Igor: a) Sua afirmação no texto "Neste sentido, ao contrário das ideias utópicas do liberalismo, o capital tende a se acumular" está incorreta. O liberalismo afirma que a desigualdade de renda/riqueza é uma consequência lógica da desigualdade entre as pessoas. Ou seja, algumas pessoas acumularem mais que outras é tão natural quanto o dia e a noite. Um famoso porta-voz (radical) do liberalismo é Murray Rothbard.b)"O Estado é um possível defensor do bem-estar coletivo através de políticas sociais, e em sua ausência ficamos desprotegidos frente aos interesses de lucro e exploração das grandes corporações." Falso. A realidade está aí para provar que o interesse de lucro e exploração pelas grandes corporações não foi impedida pelo Estado; pelo contrário, foi ampliada. Creio que você está entrando numa confusão entre "ser e deveria ser", brilhantemente trabalhada pelo filósofo David Hume. c) Quando o Estado protege suas empresas favoritas, ou é capturado por grandes empresas, entramos no denominado mercantilismo, duramente criticado por Adam Smith. O que vivemos no mundo hoje é, de fato, um neomercantilismo, pois é verificável esse conluio em franca operação. A China está longe de ser capitalista (o termo mais adequado é "livre mercado"); para abrir qualquer negócio e/ou fazer investimento por lá só sendo amigo do Governo, com muita corrupção, obviamente.

- Alfredo: a) "Já pelo lado dos gastos, há uma infinidade de pontos onde a eficiência estatal deveria ser aperfeiçoada, mas dois deles têm relevância fundamental no orçamento: a gestão do funcionalismo público... ". Além da descontinuidade, bem ilustrada nessa tese de doutorado sugerida por ti, enquanto houver a chamada "estabilidade" no serviço público, o servidor não terá qualquer motivação para fazer um bom serviço, exceto, talvez, a moral. O individualismo leva o servidor a ser eficiente para si próprio, ou seja, o mínimo de esforço para o maior salário possível. E isso é agravado pelo sindicalismo, fator extremamente maléfico para as empresas (Constantino 2009), cujos danos também são sentidos pelo Estado. O que quero dizer é que não adianta tentar melhorar o Estado. Ele oferece poucos benefícios à sociedade e, quando consegue, é pior que a solução privada.b) Concordo que deve haver descentralização, porém por motivos diferentes. Quanto menos concentrado, mais fraco será o Estado, no sentido em que este não terá força coercitiva suficiente e será melhor fiscalizado pela sociedade, por estar "mais próximo". Mesmo assim, isso não garante melhor gestão. E fazer a redistribuição tributária entre os entes federados definitivamente não é garantia de que serão prestados bons serviços públicos. Fazendo o cruzamento entre dados dos municípios de maior orçamento (FINBRA STN) e seus respectivos níveis de desenvolvimento e bem-estar (PNUD), isso fica mais claro.

5/1/15 11:55  

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