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17.2.15

A educação de Casanova, parte 8

Texto recomendado para maiores de 16 anos.

« continuando da parte 7


8.

Seguindo o conselho de Duniazade, me aproveitei de uma migração de pássaros peregrinos para atravessar, pelos céus, todo o longo caminho que um dia os primeiros desbravadores desta grande Atlântida tiveram de percorrer, por entre planícies, terras secas e rios caudalosos, imensas cordilheiras e verdejantes florestas, até chegar a uma distinta cidade cravejada entre belas praias e montanhas onduladas, guardada por um deus convidativo, sempre de braços abertos.

De fato, cheguei bem a tempo da grande festa, encenada e reencenada desde tempos imemoriais... Quem diria que os nossos bailes de máscaras tão contidos, tão hipócritas, um dia se tornariam este tilintar incessante de vida por dentre vielas e avenidas. Quem diria que ainda haveria deuses antigos dispostos a carregar seus carros navais em procissão, e deuses dos quais nunca tínhamos ouvido falar na própria Europa!

Finalmente libreto do meu grande tédio, e reeducado na Grande Arte do Amor por meu amigo Asik, eu tinha novamente olhos de enxergar, e assim enxergava com toda a clareza que não foram meus irmãos exploradores os responsáveis por tamanha algazarra – nem navegantes portugueses, nem espanhóis, franceses ou holandeses. Quem trouxe todo aquele ritmo, todos aqueles toques de tambor, todos aqueles sorrisos, foram exatamente os acorrentados à força, os que foram expulsos de suas terras, de suas famílias e seus deuses, os que foram humilhados e explorados, e depois liberados à sua própria sorte... Apesar de tanto sofrimento, foram eles quem riram no final, foi a sua alma e a sua cultura que prevaleceu!

Talvez isso explicasse porque aquele deus estava finalmente de braços abertos, livre de sua horrenda cruz: talvez os seres dessa terra tenham sido influenciados pelos deuses do outro lado do oceano, e compreendido enfim que não havia nem nunca houve um “pecado original” a ser pago, e que a cada um cabe cuidar de sua própria alma... Talvez isso explicasse porque, nos dias ligeiros desta grande festa, todos os deuses e todos os homens e mulheres, e todos os santos e crianças, dançavam e pulavam juntos no ritmo do coração do mundo...

Por debaixo de belos aquedutos e ao lado de frondosas linhas de palmeiras-reais, eu pude ver muitos deles mascarados, mas suas máscaras em nada lembravam as de meus tempos de jovem sedutor em Veneza. Lá, elas serviam tão somente para adornar ainda mais aos egos, enquanto que aqui nesta terra tropical elas serviam realmente para substituir ao ego inteiramente, como faziam os romanos e os gregos antigos. Por alguns dias, em meio a um calor escaldante, todos os mascarados e mascaradas que desciam às ruas eram como parte de uma mesma família... Por alguns dias, os seres todos desta bela cidade encenavam um verdadeiro céu na terra...

Que bom poder haver chegado exatamente nesta época. Era tudo novo, belo e quente, mas algo me dizia que não era somente para festejar a vida que Dunia havia me indicado esta direção migratória. Afinal, a mitologia desta história trata de deuses, mas sobretudo de homens e mulheres, e todo o amor possível entre os seres. E, de fato, foi quando finalmente cheguei próximo a praia, voltada para aquele grandioso oceano por onde passaram tantos escravos carregando seus deuses no fundo da alma, que a vi de relance, mergulhando próximo ao horizonte, quase junto ao sol que já ia se pondo. Ao meu lado, havia um velho pescador negro que já ia recolhendo a sua rede. Foi a primeira pessoa com quem falei no Campo do Leblon:

“Quem é ela?”

“Ora seu moço, e você a viu?”

“Vi. Como não ver uma pérola negra em meio a esse mar esverdeado?”

“Você não é um turista qualquer não né moço? Sabe que vou lhe falar: para um sujeito qualquer, o encanto dessa moça é muito, muito perigoso!”

“Não sei se eu sou ou não um turista qualquer... Não tenho dinheiro, mas não preciso mais dele. Há muito tempo que sou um turista da alma, e trafego por entre o coração dos homens, mas principalmente das mulheres...”

“Então seu moço, você é mais ou menos como ela. Eu nunca me meti a tratar com ela por medo de ser enfeitiçado e carregado para o fundo do mar. Mas você não parece ser do tipo que tem medo algum do fundo do mar... Talvez ela lhe dê alguma bola afinal.”

“Obrigado pelo conselho meu amigo. Eu acho que estou já apaixonado. Meu Deus, já faz tanto tempo que nem me lembrava como era... Mas, me diga, pois quero ter alguma chance de ser ao menos um amigo, por qual nome ela é conhecida nessas praias de cá?”

“Desde que me conheço por gente, ela sempre foi assim, negra e bela, e nós sempre a chamamos Janaína...”


***

Esta foi a oitava parte de A educação de Casanova, por raph em 2015.
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