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3.12.15

O amigo terrorista

Na Arábia Saudita, o cinema é proibido, e não há escolas de arte. No entanto, sabe-se lá como, há uma cena artística saudita que vem crescendo e se tornando cada vez mais ativa na crítica ao regime monarquista.

Apesar do governo saudita tentar abafar ao máximo tudo o que ocorre dentro de seu território que atenta flagrantemente contra os direitos humanos, está cada vez mais difícil esconder absolutamente tudo... Recentemente um caso em particular criou certa comoção online – nele, um poeta foi condenado à morte:

Um tribunal saudita ordenou no final de Novembro (2015) a execução de Ashraf Fayadh, poeta palestino que vive na Arábia como refugiado. Ele tem agora pouco menos de 30 dias para recorrer da decisão. Mas ativistas que vêm acompanhando o processo contam que no momento lhe é vedado o acesso a representantes legais, e todas as visitas são proibidas.

Com 35 anos, Fayadh é um dos responsáveis pela associação cultural e artística Edge of Arabia, e já organizou várias exposições na Europa, inclusive na Bienal de Veneza, mas foi a sua poesia que o levou à prisão, primeiro em Agosto de 2013, e novamente em Janeiro de 2014.

Em Maio de 2014, um tribunal de Abha, no sudoeste da Arábia Saudita, condenou-o a quatro anos de prisão e 800 chicotadas. Mas Fayadh voltou a ser julgado no mês passado e um novo juiz resolveu lhe condenar à morte após ler trechos do seu livro de poemas publicado em 2008, cujo título pode ser traduzido para algo como Instruções no Interior.

A forma brutal com a qual a justiça saudita costuma aplicar sua pena capital – usualmente decapitações –, aliada ao fato de termos um poeta condenado a esse tipo de pena, levou muitos internautas europeus a denunciarem o caso no twitter. Um britânico chegou a comparar a Arábia Saudita ao Estado Islâmico, e o governo saudita ameaçou processá-lo.

De fato, se pararmos para uma rápida reflexão, poderemos constatar que a grande diferença entre o Estado Islâmico e a Arábia Saudita é o fato do primeiro ser considerado um estado não oficial, terrorista, e o último ser, basicamente, um aliado do Ocidente, uma espécie de “amigo terrorista” com quem ninguém quer realmente criar problema. E, claro, ambos se declaram islâmicos, mas certamente usam isso, hoje em dia, mais para justificar uma espécie de feudalismo arcaico do que propriamente para seguir os preceitos do Corão.

Afinal, um verdadeiro seguidor do Corão jamais condenaria um poeta à morte por decapitação. Ponto.

Dizem que Fayadh foi condenado porque sua poesia “prega o ateísmo”. Mas não é exatamente isso que sentimos ao ler seus poemas. Abaixo, segue um trecho do livro traduzido pelo jornalista Jorge Pontual e lido, pelo próprio, no programa GloboNews em Pauta:

Asilo,
ficar de pé no fim da fila
para receber um pedaço de pão.

De pé, como seu avô ficava,
sem saber porquê...
O pedaço de pão?

Você.

A pátria:
Um cartão para por na sua carteira.
Dinheiro:
Papéis com fotos de líderes.
A foto?

O que substituí você,
até o seu retorno...

E o retorno?
Uma criatura mitológica,
daquelas histórias que a sua vó contava.

O petróleo é inofensivo,
a não ser pela pobreza que deixa em seu rastro.
No dia em que os rostos
dos que descobrem mais um poço
ficarem escuros,
e quando soprarem vida no seu coração
para que possam extrair mais petróleo
da sua alma, para uso público:
Esta será a verdadeira promessa do petróleo.

Você é inexperiente,
lhe faltam as gotas de chuva
para lavar os restos do seu passado
e liberá-lo do que chamam “devoção”;
daquele coração capaz de amar e brincar,
e de interagir com sua obscena retirada
daquela flácida religião;
daquela pregação falsa
de deuses que perderam o orgulho...

Os profetas se aposentaram,
então não espere que os seus
venham até você.
Porque para você os monitores trazem
os seus relatórios diários,
e mostram seus altos salários...

Como o dinheiro é importante para uma vida digna!
Meu avô fica de pé, nu, todos os dias,
sem banimento, sem criação divina...
Fui ressuscitado
sem um sopro de Deus na minha imagem,
sou a experiência do Inferno na Terra.

A Terra
é o Inferno
preparado para os refugiados...


Se este blog fosse hospedado na Arábia Saudita, já não existiria mais.
Se eu morasse por lá, escrevendo tudo o que escrevo, provavelmente já teria sido preso, quem sabe executado.
Mas mesmos nós, os poetas, se somos executados, somos encaminhados ao livramento... do refúgio neste mundo de chumbo.
Mas ai daqueles que matam os poetas em nome de Deus – para eles, o Inferno já se faz presente, e não há realmente escapatória: o Inferno está em seus próprios corações negros, e todos os seus pensamentos são podridão.

***

Crédito da imagem: Google Image Search

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1 comentários:

Blogger Alexandre disse...

Será sempre essa a história da humanidade: Usar Deus ou A Religião para justificar a nossa escuridão interior?
Lá do alto, a luz maior observa, distante, ainda na esperança de nossa libertação.
Obrigado, Raph!

4/12/15 13:58  

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