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6.12.16

Avistando tribos, parte 1

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).


Eu havia finalmente encontrado a gruta. Não era uma caverna, um buraco no chão ou nalgum tronco oco, mas uma gruta, e bem debaixo da cachoeira que eu costumava sempre ver ao longe... E agora, tão perto, era belo assistir a corredeira passar por cima de mim, salpicando gotículas que pairavam por todo o ambiente. Até o musgo nas pedras era de um verde que talvez só existisse mesmo ali, dentro de mim.

Mas eu não estava ali para admirar a Natureza que a mente imagina, estava ali para adentrar a gruta, e encontrar o meu animal de poder!

Ao mesmo tempo em que estava lá, frente a frente com a entrada escura que me encaminharia para algo desconhecido debaixo da terra, também estava em plena Avenida Paulista, confortavelmente sentado ao lado das dezenas de inscritos no V Simpósio de Hermetismo (2016), escutando ao ritmado e potente toque de tambor de Fernando Maiorino, fundador do Núcleo Xamânico Casca da Tartaruga, o primeiro palestrante daquele sábado.

Como o próprio Maiorino havia dito na apresentação que antecedeu aquela prática, “para o xamã os mundos sonhados são tão reais quanto este”. Num certo sentido, a experiência espiritual pela qual muitos de nós passamos na busca por nosso animal de poder era ainda mais real do que o mundo em que vivemos de olhos abertos, mas na maior parte das vezes desatentos para o que há de belo na Natureza lá fora. Afinal, a capacidade de estar atento à tanta beleza depende essencialmente da beleza que encontramos lá dentro, em nossas cavernas ancestrais e no seu entorno.

Segundo Maiorino, deveríamos fechar os olhos e relaxar a mente, permitindo que ela “inventasse as coisas livremente”. Essa invenção, obviamente, era guiada pelo passo a passo do ritual: “Se veja numa floresta, sinta o ambiente a sua volta, a grama, a corpulência das árvores, a brisa etc. Então procure por uma caverna, ou algum buraco no chão, um tronco oco de árvore, qualquer coisa que você possa se meter dentro. Entre nele e, ao aparecer um animal, lhe pergunte – Você é meu animal de poder?”

Em O Espírito do Xamã, o estudioso e praticante de xamanismo Mike Williams explica que o animal de poder, ou nagual, “não é um totem, não representa uma pessoa ou sua linhagem, e não é um animal real. Só é possível interagir com o animal de poder num plano paralelo. Cada pessoa tem um animal de poder próprio, que a acompanha por toda a vida, estando ela ciente disso ou não”. Na realidade, o animal de poder representa um aspecto expressivo de nosso próprio mundo interior, de nosso inconsciente mais ancestral e profundo. Conhecer nosso animal é talvez a mais antiga e sobrevivente prática de autoconhecimento da humanidade, muito anterior à religião arcaica, a filosofia e tudo o que veio depois...

Obviamente que o tambor tinha forte influência no ritual, era ele o instrumento primordial para a condução aos chamados estados alterados de consciência, que permitiam que a mente “inventasse tanta coisa”. Como bem resumiu Maiorino, “o tambor representa o útero de Gaia, e o seu som, a batida do coração da Terra”. A experiência xamânica é indissociável da experiência de contato com a Natureza, ainda que todos estivéssemos de fato bem no centro de uma das maiores metrópoles do planeta, que não foi exatamente sábia em sua urbanização.

Uma coisa que provavelmente auxiliou em minha jornada sob o som do tambor é o fato de que o meu Templo Astral [1] já é situado num espaço natural e aberto. Normalmente estou ao lado de um imenso carvalho, sentado numa pequena pedra sobre a grama, em cima de um monte, e à distância vejo um rio passar, vindo de uma cachoeira bem mais ao fundo, a minha direita, caindo de uma montanha um pouco maior.

Assim que fechei os olhos estava lá, como sempre. Tudo o que tive de fazer foi me levantar e me virar, pois sabia que atrás de mim havia uma floresta. Em meu ceticismo (subjetivo) eu honestamente pensei que provavelmente veria muitas araucárias e quem sabe eucaliptos, pois é esta a flora da Serra da Mantiqueira ao sul de Minas Gerais, onde vou desde pequeno passar algumas das minhas férias, e de longe o lugar do planeta onde mais me embrenhei no mato, por assim dizer. Mas nunca me toquei de que a charada já estava posta: ora, se em meu Templo eu sempre estive ao lado de um carvalho, era mesmo para se supor que a floresta seria de frondosos carvalhos – e, de fato, era exatamente assim.

É preciso deixar claro que nunca tive muita facilidade para esse tipo de ritual de “imaginação de coisas”. Até mesmo por isso eu construí mentalmente o meu Templo de forma bastante elaborada, para sempre ter ao menos uma boa base para as viagens internas. Nessa aventura ao som do tambor de Maiorino, no entanto, eu vi e vivenciei muita coisa, muito mais coisa do que seria verossímil acontecer nos 10 minutos em que durou a prática.

Mas, assim como nos sonhos, onde muita coisa pode ocorrer em pouco tempo, e onde vemos muitas coisas, mas sem usar os olhos, e escutamos a tudo, sem usar os ouvidos, e por vezes falamos, sem mexer os lábios, exatamente assim se passou naquele longo sonho lúcido em meu mundo interior.

Enquanto num prédio da Avenida Paulista um antigo tocador de tambor se aproximou de onde eu estava sentado, e com ele o seu som mágico, em meu Templo eu imediatamente iniciava a minha jornada... Adentrando a floresta, parcamente iluminada pelos poucos raios de sol que venciam os carvalhos gigantes, procurei e procurei por alguma caverna ou buraco que fosse, mas estranhamente era sempre atraído para o som do rio e da cachoeira distante. Me embrenhei profundamente na mata, descendo e subindo níveis, sem encontrar nenhuma caverna ou animal, até que, de repente, vi uma abertura na floresta, e ao passar por ela me dei de cara com a cena inicial deste relato: a gruta por baixo da cachoeira, a água caudalosa passando por cima, as gotas transparentes flutuando pelo ar, o musgo de um verde peculiar, e a entrada escura, rumo ao fundo da terra.

Naquele momento eu busquei seguir os comandos ritualísticos a risca: “Entre na caverna e, ao aparecer um animal, lhe pergunte – Você é meu animal de poder?”. Assim, era óbvio que eu tinha de entrar naquela gruta escura. Mas algo me deteve. Não foi o medo nem nada parecido, pois eu de fato estava ansioso por encontrar algum animal que fosse. Foi algo mais inusitado: o ressonante piar de alguma ave, lá no alto, que descia em círculos em minha direção. Era ela quem não me deixava entrar!

Assim, acomodando meus olhos a claridade que vinha do alto, e desviando das gotas da cachoeira, pude contemplá-la em toda a sua beleza e magnitude: uma Águia de penas brancas e acinzentadas [2], imperadora do ar, vinha circulando pelo céu...

Ela havia me escolhido há quem sabe tantas vidas, e era ali, precisamente na entrada da gruta, o nosso reencontro tão esperado. O tipo de reencontro que será lembrado por muito, muito tempo.

» Em seguida, voando com a Águia...

***

[1] Segundo Marcelo Del Debbio, “o Templo Astral é uma das primeiras coisas que um estudioso de ocultismo aprende a fazer, em praticamente qualquer Ordem ou Fraternidade que ingresse. Trata-se de uma construção no Plano Mental e Astral de um refúgio onde o magista pode descansar a mente, preparar uma viagem astral e guardar suas ferramentas. Trata-se de um local onde ele pode até mesmo realizar rituais se não dispor de espaço físico no Plano Material para tal”. Eu devo acrescentar que uso o meu Templo para tudo, desde breves meditações a trabalhos espiritualistas em geral, seja no campo do espiritismo e umbanda, seja no campo da magia. Saiba como criar o seu.

[2] Aqui é preciso ser sincero e admitir que o que eu vivenciei foi mais o conceito, o símbolo de uma águia. O que me chamou mais a atenção foi o seu rosto (os olhos e o bico), e não tenho certeza se era uma águia de cabeça branca, aquela mais famosa que é inclusive símbolo dos EUA, ou alguma outra espécie. Para este relato, eu optei por considerar a espécie Geranoaetus melanoleucus, a águia serrana, por ser uma espécie que vive em território brasileiro. Talvez seja só o incômodo de um cético, me perdoem.

Crédito das fotos: [topo] AESG/Divulgação (Fernando Maiorino durante o V Simpósio de Hermetismo); [ao longo] avespampa(.)com(.)ar (Águia Serrana)

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1 comentários:

Blogger raph disse...

Vou contar uma curiosidade que percebi somente após haver escrito o conto: na verdade os termos "caverna" e "gruta" se referem basicamente a mesma coisa, embora por "gruta" geralmente compreendamos uma caverna menor, onde por vezes não dê pode ficar de pé, e onde há água. Na minha mente, o termo "gruta" esteve presente desde o início, embora visualmente eu pudesse muito bem chamar o que vi de "caverna". Creio que, no fim das contas, o que me fez ficar com a "gruta" foi o fato de haver água.

raph

6/12/16 16:52  

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